Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco. August Nemo

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      — Não digas sacrifício, Teresa... Amanhã a estas horas verás que transfiguração se fez na tua alma. Teu primo é um composto de todas as virtudes; nem a qualidade de ser um gentil moço lhe falta, como se a riqueza, a ciência e as virtudes não bastassem a formar um marido excelente.

      — E ele quer-me. depois de eu me ter negado? - disse ela com amargura irônica.

      — Se ele está apaixonado, filha!... e tem bastante confiança em si para crer que tu hás de amá-lo muito!...

      — E não será mais certo odiá-lo eu sempre?! Eu agora mesmo o abomino como nunca pensei que se pudesse abominar! Meu pai... - continuou ela, chorando, com as mãos erguidas - mate-me; mas não me force a casar com meu primo! É escusada a violência, porque eu não caso!

      Tadeu mudou de aspecto, e disse irado:

      — Hás de casar! - Quero que cases! Quero!... Quando não, amaldiçoada serás para sempre, Teresa! Morrerás num convento! Esta casa irá para teu primo! Nenhum infame há de aqui pôr pé nas alcatifas de meus avós. Se és uma alma vil, não me pertences, não és minha filha, não podes herdar apelidos honrosos, que foram pela primeira vez insultados pelo pai desse miserável que tu amas! Maldita sejas! Entra nesse quarto, e espera que daí te arranquem para outro, onde não verás um raio de Sol.

      Teresa ergueu-se sem lágrimas, e entrou serenamente no seu quarto. Tadeu de Albuquerque foi encontrar seu sobrinho, e disse-lhe:

      — Não te posso dar minha filha, porque já não tenho filha. A miserável, a quem dei este nome, perdeu-se para nós e para ela.

      Baltasar, que, a juízo de seu tio, era um composto de excelência, tinha apenas um quebra; a absoluta carência de brios. Malograda a tentativa do seu amor de emboscada, tornou para a terra o primo de Teresa, dizendo ao velho que ele o livraria do assédio em que Simão Botelho lhe tinha o coração da filha. Não aprovou a reclusão no convento, discorrendo sobre as hipóteses infamantes que a opinião pública inventaria. Aconselhou que a deixasse estar em casa, e esperasse que o filho do corregedor viesse de Coimbra.

      Ponderaram no ânimo do velho as razões de Baltasar. Teresa maravilhou-se da quietação inesperada de seu pai e desconfiou da incoerência. Escreveu a Simão. Nada lhe escondeu do sucedido; nem as ameças de Baltasar por delicadeza suprimiu. Rematava comunicando-lhe as suas suspeitas de algum plano de violência.

      O acadêmico, chegando ao período das ameças. já não tinha clara luz nos olhos para decifrar o restante da carta. Tremia sezões, e as artérias frontais arfavam-lhe entumescidas. Não era sobressalto do coração apaixonado: era a índole arrogante que lhe escaldava o sangue. Ir dali a Castro-d'Aire e apunhalar o primo de Teresa na sua própria casa, foi o primeiro conselho que lhe segredou a fúria do ódio. Neste propósito saiu, alugou cavalo, e recolheu a vestir-se de jornada. Já preparado, a cada minuto de espera assomava-se em frenesis. O cavalo demorou-se meia hora, e o seu bom anjo, neste espaço, vestido com as galas com que ele vestia na imaginação Teresa, deu-lhe rebates de saudade daqueles tempos e ainda das horas daquele mesmo dia em que cismava na felicidade que o amor lhe prometia, se ele a procurasse no caminho do trabalho, e da honra. Contemplou os seus livros com tanto afeto, como se em cada um estivesse uma página da história do seu coração. Nenhuma daquelas páginas tinha ele lido, sem que a imagem de Teresa lhe aparecesse a fortalecê-lo para vencer os tédios da continuada aplicação, e os ímpetos dum natural inquieto e ansioso de comoções desusadas. "E há de tudo acabar assim? - pensava ele, com a face entre as mãos, encostado à sua banca de estudo. - Ainda há pouco eu era tão feliz!... - Feliz! - repetiu ele, erguendo-se de golpe. - Quem pode ser feliz com a desonra duma ameaça impune7 Mas eu perco-a! Nunca mais hei de vê-la!. . . Fugirei como um assassino, e meu pai será o meu primeiro inimigo, e ela mesmo há de horrorizar-se da minha vingança... A ameaça só ela a ouviu; e, se eu tivesse sido aviltado no conceito de Teresa pelos insultos do miserável, talvez que ela os não repetisse.

      Simão Botelho releu a carta duas vezes, e à terceira leitura achou menos afrontosas as bravatas do fidalgo cioso. A5 linhas finais desmentiam formalmente a suspeita do aviltamento, com que o seu orgulho o atormentava: eram expressões ternas, súplicas ao seu amor como recompensa dos passados e futuros desgostos, visões encantadoras do futuro, novos juramentos de constância, e sentidas frases de saudade.

      Quando o arreeiro bateu à porta, Simão Botelho já não pensava em matar o homem de Castro-d'Aire; mas resolvera ir a Viseu, entrar de noite, esconder-se e ver Teresa. Faltava-lhe, porém, casa de confiança onde se ocultasse. Nas estalagens, seria logo descoberto. Perguntou ao arreeiro se conhecia alguma casa em Viseu onde ele pudesse estar escondido uma noite ou duas, sem receio de ser denunciado. O arreeiro respondeu que tinha, a um quarto de légua de Viseu, um primo ferrador; e não conhecia em Viseu senão os estalajadeiros. Simão achou aproveitável o parentesco do homem, e logo daí o presenteou com uma jaqueta de peles e uma faixa de seda escarlate, à conta de maiores valores prometidos, se ele o bem servisse numa empresa, amorosa.

      No dia seguinte, chegou o acadêmico a casa do ferrador. O arreeiro deu conta ao seu parente do que vinha tratado com o estudante.

      Foi Simão Botelho cautelosamente hospedado, e o arreeiro abalou no mesmo ponto para Viseu, com uma carta destinada a uma mendiga, que morava no mais impraticável beco da terra. A mendiga informou-se miudamente da pessoa que enviava a carta, e saiu, mandando esperar o caminheiro. Pouco depois. voltou ela com a resposta, e o arreeiro partiu a galope.

      Era a resposta um grito de alegria. Teresa não refletiu, respondendo a Simão que naquela noite se festejavam os seus anos, e se reuniam em casa os parentes. Disse-lhe que às onze horas em ponto ela iria ao quintal e lhe abriria a porta.

      Não esperava tanto o acadêmico. O que ele pedia era falar-lhe da rua para a janela do seu quarto, e receava impossível este prazer, que ele avaliava o máximo. Apertar-lhe a mão, sentir-lhe o hálito, abraçá-la talvez, cometer a ousadia de um beijo, estas esperanças, tão além de suas modestas e honestas ambições, igualmente o enlevavam e assustavam. Enlevo e susto em corações que se estreiam na comédia humana são sentimentos congeniais.

      A hora da partida, Simão tremia, e a si mesmo pedia contas da timidez, sem saber que os encantos da vida, os mais angélicos momentos da alma, são esses lances de misterioso alvoroço que aos mais seródios de coração sucedem em todas as razões da vida, e a todos os homens, uma vez ao menos.

      As onze horas em ponto estava Simão encostado á porta do quintal, e a distância convencionada o arreeiro com o cavalo à rédea. A toada da música, que vinha das salas remotas, alvoroçava-o, porque a festa em casa de Tadeu de Albuquerque o surpreendera. No longo termo de três anos nunca ele ouvira música naquela casa. Se ele soubesse o dia natalício de Teresa, espantara-se menos da estranha alegria daquelas salas, sempre fechadas como em dias de mortório. Simão imaginou desvairadamente as quimeras que voejam, ora negras, ora translúcidas, em redor da fantasia apaixonada. Não há baliza racional para as belas, nem para as horrorosas ilusões, quando o amor as inventa. Simão Botelho, com o ouvido colado à fechadura, ouvia apenas o som das flautas, e as pancadas do coração sobressaltado.

      V

      Baltasar Coutinho estava na sala, simulando vingativa indiferença por sua prima. As irmãs do fidalgo e a demais parentela da casa não deixavam respirar Teresa. Moças e velhas, todas, uma, se repetiam, aconselhando-a a reconciliar-se com seu primo, e dar a seu pai a alegria que o pobre velho tanto rogava Deus, antes de fechar os olhos. Replicava Teresa que não queria mal a seu primo, nem sequer estava sentida dele; que era sua amiga, e se-lo-ia sempre enquanto ele lhe deixasse livre o coração.

      O velho esperava muito daquela noitada de festa. Alguns parentes presumidos de circunspectos, lhe tinham dito que seria proveitoso regalar a filha com os prazeres congruentes à sua idade, dando-lhe ensejo a que ela repartisse o espírito, concentrado num só ponto, por diversões em que a natural vaidade se preocupa, e a força do amor contrariado se vai a pouco e pouco quebrantando. Aconselharam-lhe as reuniões amiúdas, já em sua casa, já na dos seus parentes, para deste modo Teresa se mostrar a muitos, ser cortejada de todos, e ter em opinião


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