Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco. August Nemo
sobre várias conjeturas. De tudo o que eles disseram uma coisa era certíssima: ser o vulto o João da Cruz, ferrador.
Teria este dado trezentos passos, quando os criados de Baltasar ouviram o remoto tropel da cavalgadura.
Ao tempo que eles saíam do seu esconderijo, saía João da Cruz à frente do cavaleiro. Simão aperrou as pistolas, e o arreeiro uma clavina.
— Não há novidade - disse o ferrador -; mas saiba vossa senhoria que já podia estar em baixo do cavalo com quatro zagalotes no peito.
O arreeiro reconheceu o cunhado, e disse:
— És tu, João?
— Sou eu. Vim primeiro que tu.
Simão estendeu a mão ao ferrador, e disse, comovido.
— Dê cá a sua mão; quero sentir na minha a mão dum homem honrado.
— Nas ocasiões é que se conhecem os homens - redargüiu o ferrador. - Ora vamos... não há tempo para falatórios. O senhor doutor tem uma espera.
— Tenho - disse Simão.
— Atrás da igreja estão dois homens que eu não pude conhecer; mas não se me dava de jurar que são criados do Sr. Baltasar. Salte abaixo do cavalo, que há de haver mostarda. Eu disse-lhe que não viesse; mas vossa senhoria veio, e agora é andar com a cara para frente.
— Olhe que eu não tremo, mestre João! - disse o filho do corregedor.
— Bem sei que não; mas, à vista do inimigo, veremos.
Simão tinha apeado. O ferrador tomou as rédeas do cavalo, recuou alguns passos na rua, e foi prendê-lo à argola da parede duma estalagem.
Voltou, e disse a Simão que o seguisse a ele e ao cunhado na distância de vinte passos; e que, se os visse parar perto do quintal de Albuquerque, não passasse do ponto donde os visse.
Quis o acadêmico protestar contra um plano que o humilhava como protegido pela defesa dos dois homens; o ferrador, porém, não admitiu a réplica
— Faça o que eu lhe digo, fidal9o - disse ele com energia.
João da Cruz e o cunhado, espiando todas as esquinas, chegaram defronte do quintal de Teresa, e viram, um vulto a sumir-se no ângulo da parede.
— Vamos sobre eles - disse o ferrador - que lá passaram para o adro da igreja; nestes entrementes, o doutor chegará à porta do quintal e entra; depois voltaremos para lhe guardar a saída.
Neste propósito, moveram-se apressados, e Simão Botelho caminhou com as pistolas aperradas na direção da porta.
Em frente do muro do jardim de Teresa haviam uma cascalheira escarpada. que se esplainava depois numa alameda sombria.
Os dois criados de Baltasar, quando o tropel do cavalo parou, recordaram as ordens do amo, no caso de vir a pé Simão. Buscaram sitio azado para o espreitarem na saída, e entraram na alameda quando o acadêmico chegara à porta do quintal.
— Agora está seguro - disse um,
— Se lá não ficar dentro... - respondeu o outro, vendo-o entrar, e fechar-se a porta.
— Mas além vêm dois homens... - disse o mais assustado, olhando para a outra entrada da alameda.
— E vêm direitos a nós... Aperra lá a cravina...
— O melhor é retirarmos. Nós estamos à espera do outro, e não deste. Vamos embora daqui...
Este não esperou convencer o companheiro: desceu a ribanceira do cascalho. O mais intrépido teve também a prudência de todos os assassinos assalariados: seguiu o assustadiço, e deu-lhe razão, quando ouviu após de si os passos velozes dos perseguidores. Saiu-lhes o amo de frente quando dobravam a esquina do quintal, disse-lhes:
— Vocês a que fogem, seus poltrões?
Os homens pararam de envergonhados, aperrando os bacamartes.
João da Cruz e o arreeiro apareceram, e Baltasar caminhou para eles, brandando:
— Alto aí!
O ferrador disse ao cunhado:
— Fala-lhe tu, que eu não quero que ele me conheça.
— Quem manda fazer alto? - disse o arreeiro.
— São três clavinas - respondeu Baltasar.
— Olha se os demoras a dar tempo que o doutor saía - disse João da Cruz ao ouvido do arreeiro.
— Pois nós cá estamos parados - replicou o criado de Simão. - Que nos querem vocês?
— Quero saber o que têm que fazer neste sítio.
— E vocês o que fazem por cá?
— Não admito perguntas - disse o de Castro-d'Aire, aventurando alguns passos vacilantes para a frente. - Quero saber quem são.
Mestre João disse ao ouvido do cunhado:
— Diz-lhe que, se dá mais um passo, que o arrebentas.
O arreeiro repetiu a cláusula, e Baltasar parou.
Um dos criados deles chamou-o ao lado para lhe dizer que aquele dos dois que não falava parecia ser o João da Cruz. O morgado duvidou, e quis esclarecer-se; mas o ferrador ouvira as palavras do criado, e disse ao cunhado:
— Vem comigo, que eles conhecem-me.
Dizendo, voltou as costas ao grupo, e caminhou ao longo do quintal de Tadeu de Albuquerque. Os criados de Baltasar, gloriosos da retirada, como de uma derrota certa, apressaram o passo, na cola dos supostos fugitivos. O morgado ainda lhes disse que os não seguissem; mas eles, momentos antes cobardes, queriam desforrar-se agora, correndo após o inimigo tanto quanto lhe tinham fugido antes.
Simão Botelho ouvira passos ligeiros, e, compelido pelo susto de Teresa, abrira a porta do quintal, sem saber ainda de quem fossem os passos. João da Cruz, com ar galhofeiro, já quando os perseguidores se viam, disse ao filho do corregedor, se estavam ajustando o casamento, que não havia pano para mangas.
Simão entendeu o perigo, apertou convulsamente a mão de Teresa, e retirou-se. Queria ele reconhecer os dois vultos parados a distância, mas João da Cruz, com o tom imperioso de quem obriga à submissão, disse ao filho do corregedor:
— Vá por onde veio, e não olhe para trás. Simão foi indo até encontrar o cavalo. Montou, e esperou os dois inalteráveis guardas que o seguiam a passo vagaroso. Maravilhara-os o súbito desaparecimento dos criados de Baltasar, e recearam-se de alguma espera fora da cidade. O ferrador conhecia o atalho que podia levar os da emboscada ao caminho, e revelou o seu receio a Simão, dizendo-lhe que picasse a toda a brida, que ele e o cunhado lá iriam ter. O acadêmico recebeu com enfado a advertência, admoestando-os a que o não tivessem em tal vil preço. E acintemente sofreu as rédeas para não forçar os homens a aligeirar o passo.
— Vá como quiser - disse mestre João - que nós vamos por fora do caminho.
E subiram a uma rampa de olivais, para tornarem a descer encobertos por moitas de giesta, cosendo-se aos torcicolos duma parede paralela com a estrada.
— O atalho vai acolá onde a serra faz aquele cotovelo - disse o ferrador ao cunhado, - hão de ali passar, ou já passaram. A estrada vai mesmo na quebrada daquele outeirinho. Os homens é dali que vão atirar, encobertos pelos sobreiros. Vamos depressa...
E um pouco descobertos, e outro curvados à sombra das devesas, chegaram a um valado donde ouviram os passos dos dois homens que atravessavam o pontilhão de um córrego.
— Já não vamos a tempo - disse aflito o João da Cruz - os homens vão atirar-lhe, porque o cavalo trupa cá muito atrás.
E corriam já sem temor de serem vistos, porque os outros tinham dobrado o outeiro, em cujo vale corria a estrada.
— Os homens vão atirar-lhe...