Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco. August Nemo

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e saltado o tapada, e iam descendo para a estrada, quando o ferrador exclamou:

      — Lá me ficou a minha clavina escostada à sebe... Vão indo que eu venho já.

      O arreeiro conduzia o cavalo, que pacificamente estivera tosando a relva das paredes marginais da estrada, quando Simão ouviu gritos. Conjeturou com certeza o que era.

      — O João lá está a fazer justiça! - disse o arreeiro - Deixá-lo lá, meu amo, que ele é homem que sabe o que faz.

      João da Cruz apareceu daí a pouco, limpando com fentos o podão ensangüentado.

      — Você é cruel, sr. João - disse o acadêmico.

      — Não sou cruel - disse o ferrador - o fidalgo está enganado comigo; é que, diz lá o ditado, morrer por morrer, morra meu pai, que é mais velho. Tanto faz matar um como dois. Quando se está com a mão na massa, tanto faz amassar um alqueire como três. As obras devem ser acabadas, ou então o melhor é não se meter a gente nelas. Agora levo a minha consciência sossegada. A justiça que prove, se quiser; mas não há de ser porque lho digam aqueles dois que eu mandei de presente ao diabo.

      Simão teve um instante de horror do homicida, e de arrependimento de se ter ligado com tal homem.

      VII

      O ferimento de Simão Botelho era melindroso demais para obedecer prontamente ao curativo do ferrador, enfronhado em aforismos de alveitaria. A bala passara-lhe de revés a porção muscular do braço esquerdo; mas algum vaso importante rompera, que não bastavam compressas a vedar-lhe o sangue. Horas depois de ferido, o acadêmico deitou-se febril, deixando-se medicar pelo ferrador. O arreeiro partiu para Coimbra, encarregado de espalhar a notícia de ter ficado no Porto Simão Botelho.

      Mais que as dores e o receio da amputação, o mortificava a ânsia de saber novas de Teresa. João da Cruz estava sempre de sobrerrolda, precavido contra algum procedimento judicial por suspeitas dele. As pessoas que vinham de feirar na cidade contavam todas que dois homens tinham aparecido mortos, e constava serem criados dum fidalgo de Castrod'Aire, Ninguém, porém, ouvira imputar o assassínio a determinadas pessoas.

      Na tarde desse dia recebeu Simão a seguinte carta de Teresa:

      "Deus permita que tenhas chegado sem perigo a casa dessa boa gente. Eu não sei o que se passa. mas há coisa misteriosa que eu não posso adivinhar. Meu pai tem estado toda a manhã fechado com o primo, e a mim não me deixa sair do quarto. Mandou-me tirar o tinteiro; mas eu felizmente estava prevenida com outro. Nossa Senhora quis que a pobre viesse pedir esmola debaixo da janela do meu quarto; senão, eu nem tinha modo de lhe dar sinal para ela esperar esta carta. Não sei o que ela me disse Falou-me em criados mortos; mas eu não pude entender... Tua mana Rita está-me acenando por trás dos vidros do teu quarto...

      Disse-me agora tua mana que os moços de meu primo tinham aparecido mortos perto da estrada. Agora já sei tudo. Estive para lhe dizer que tu aí estás, mas não me deram tempo. Meu pai de hora a hora dá passeios no corredor, e solta uns ais muitos altos.

      Ó meu querido Simão, que será feito de ti?... Estás ferido? Serei eu a causa da tua morte?

      Dize-me o que souberes. Eu já não peço a Deus senão a tua vida. Foge desses sítios: vai para Coimbra, e espera que o tempo melhore a nossa situação. Tem confiança nesta desgraçada, que é digna da tua dedicação... Chega a pobre: não quero demorá-la mais... Perguntei-lhe se se dizia de ti alguma coisa, e ela respondeu que não. Deus o queira".

      Respondeu Simão a querer tranqüilizar o ânimo de Tereza. Do seu sofrimento falava tão de passagem, que dava a supor que nem o curativo era necessário. Prometia partir para Coimbra logo que o pudesse fazer sem receio de Teresa sofrer na sua ausência. Animava-a a chamá-lo assim que as ameaças do convento passassem a ser realizadas.

      Entretanto, Baltasar Coutinho, chamado às autoridades judiciárias para esclarecer a devassa instaurada, respondeu que efetivamente os homens mortos eram seus criados, de quem ele e sua família se acompanhara de Castro-d'Aire. Acrescentou que não sabia que eles tivessem inimigos em Viseu, nem tinha contra alguém as mais leves presunções.

      Os mais próximos vizinhos da localidade onde os cadáveres tinham aparecido apenas depunham que, alta noite, tinham ouvido dois tiros ao mesmo tempo, e outro pouco depois. Um apenas adiantava coisa que não podia alumiar a justiça, e vinha a ser que o mato, nas vizinhanças do local, fora chapotado. Nesta escuridade a justiça não podia dar passo algum.

      Tadeu de Albuquerque era conivente no atentado contra a vida de Simão Botelho. Fora seu ó alvitre, quando o sobrinho denunciou a causa das saídas freqüentes de Teresa na noite do baile. Tanto ao velho como ao morgado convinha apagar algum indício que pudesse envolvê-los no mistério daquelas duas mortes. Os criados não mereciam as penas dum desforço que implicasse o desdouro de seus amos. Provas contra Simão Botelho não podiam aduzi-las. Aquela hora o supunham eles a caminho de Coimbra, ou refugiado em casa de seu pai. Restava-lhes ainda a esperança de que ele tivesse sido ferido, e fosse acabar longe do local em que o tinham assaltado.

      Enquanto a Teresa, resolveu Albuquerque encerrá-la num convento do Porto, e escolheu Monchique, onde era prioresa uma sua próxima parenta. Escreveu à prelada para lhe preparar aposentos, e ao procurador para negociar as licenças eclesiásticas para a entrada. Todavia, receando o velho algum incidente no espaço de tempo que medeava até se conseguirem as licenças, resolveu não ter consigo Teresa, e solicitou a retenção temporária dela num convento de Viseu.

      Acabara Teresa de ler e esconder no seio a resposta de Simão Botelho que a mendiga lhe passara ao escurecer, pendente de uma linha, quando o pai entrou no seu quarto, e a mandou vestir-se. A menina obedeceu, tomando uma capa e um lenço,

      — Vista-se como quem é: lembre-se que ainda tem os meus apelidos - disse com severidade o velho.

      — Cuidei que não era preciso vestir-me melhor para sair à noite... - disse Teresa.

      — E a senhora sabe para onde vai?

      — Não sei... meu pai.

      — Então vista-se, e não me dê leis.

      — Mas, meu pai. atenda-me um momento.

      — Diga.

      — Se a sua idéia é obrigar-me a casar com meu primo...

      — E daí?

      — De certo não caso; morro, e morro contente, mas não caso.

      — Nem ele a quer. A senhora é indigna de Baltasar Coutinho. Um homem do meu sangue não aceita para esposa uma mulher que fala de noite aos amantes nos quintais. Vista-se depressa, que vai para um convento.

      — Prontamente, meu pai. Esse destino lho pedi eu muitas vezes.

      — Não quero reflexões. Daqui a pouco apareça-me vestida. Suas primas esperam-na para a acompanharem.

      Quando se viu sozinha, Teresa debulhou-se em lágrimas, e quis escrever a Simão. Aquela hora quem lhe levaria a carta? Apelou para o retábulo da Virgem, que ela fizera confidente do seu amor. Pediu-lhe de joelhos que a protegesse, e desse forças a Simão para resistir ao golpe, e guardar-lhe constância através dos trabalhos que sucedessem, Depois vestiu-se, comprimindo contra o seio um embrulho em que levava o tinteiro, o papel e o macete de cartas de Simão. Saiu do seu quarto, relanceando os olhos lacrimosos para o painel da Virgem, e, encontrando o pai, pediu-lhe licença para levar consigo aquela devota imagem.

      — Lá irá ter - respondeu ele. - Se tivesse tanta vergonha como devoção, seria mais feliz do que há de ser.

      Uma das primas, irmãs de Baltasar, chamou-a de parte. e segredou-lhe:

      — Ó menina, estava ainda na tua mão dares remédio à desordem desta casa...

      — Qual remédio?! - perguntou Teresa com artificial seriedade.

      — Diz a teu pai que não duvidas casar com o mano Baltasar...

      — Primo


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