Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco. August Nemo
Igreja a queria, se eu lhe fizesse doação de tudo, que pouco é, mas ainda quatro mil cruzados bons; o caso é que a moça não tem querido casar, e eu, a falar a verdade, sou só e mais ela, e também não tenho grande vontade de ficar sem esta companhia, para quem trabalho como moiro. Se não fosse ela, fidalgo, muitas asneiras tinha eu feito! Quando vou às feiras ou romarias, se a levo comigo, não bato, nem apanho; indo sozinho, é desordem certa. A rapariga já conhece quando a pinga me sobe ao capacete do alambique; puxa-me pela jaqueta, e por bons modos põe-me fora do arraial. Se alguém chama para beber mais um quartilho, ela não me deixa ir, e eu acho graça à obediência com que me deixo guiar pela moça, que me pede que não vá por alma da mãe. Eu cá, em ela me pedindo por alma da minha santa mulher, já não sei de que freguesia sou.
Mariana ouvia o pai. escondendo meio rosto no seu alvíssimo avental de linho. Simão estava-se gozando na simpleza daquele quadro rústico, mas sublime de naturalidade.
João da Cruz foi chamado para ferrar um cavalo, e despediu-se nestes termos:
— Tenho dito, rapariga; aqui te entrego o nosso doente: trata-o como quem é e como se fosse teu irmão ou marido.
O rosto de Mariana acerejou-se quando aquela última palavra saiu, natural como todas, da boca de seu pai.
A moça ficou encostada ao batente da alcova de Simão.
— Não foi nada boa esta praga que lhe caiu em casa, Mariana! - disse o acadêmico - Fazerem-na enfermeira dum doente, e privarem-na talvez de ir costurar na sua varanda, e conversar com as pessoas que passam...
— Que se me dá a mim disso? - respondeu ela, sacudindo o avental, e baixando o cós ao lugar da cintura com infantil graça.
— Sente-se, Mariana; seu pai disse-lhe que se sentasse... Vá buscar a sua costura, e dê-me dali um folha de papel e um lápis que está na carteira.
— Mas o pai também me disse que o não deixasse escrever... - replicou ela, sorrindo.
— Pouco, não faz mal. Eu escrevo apenas algumas linhas.
— Veja lá o que faz... - tornou ela, dando-lhe o papel e o lápis - Olhe se alguma carta se perde, e se descobre tudo...
— Tudo o quê, Mariana? Pois sabe alguma coisa.?
— Era preciso que eu fosse tola... Eu não lhe disse já que sabia da sua amizade a uma menina fidalga da cidade?
— Disse. Mas que tem isso?
— Aconteceu o que eu receava. Vossa senhoria está ai ferido, e toda a gente fala nuns homens que apareceram mortos.
— Que tenho eu com os homens que apareceram mortos?
— Para que está a fingir-se de novas?! Pois eu não sei que esses homens eram criados do primo da tal senhora? Parece que vossa senhoria desconfia de mim, e está a querer guardar um segredo que eu tomara que ninguém soubesse, para que meu pai e o senhor Simão não tenha alguns trabalhos maiores...
— Tem razão, Mariana; eu não devia esconder de si o mau encontro que tivemos.
— E Deus queira que seja o último!... Tanto tenho pedido ao Senhor dos Passos que lhe dê remédio a essa paixão!... O pior futuro é o que ainda está por passar...
— Não, menina, isto acaba assim: eu vou para Coimbra logo que esteja bom, e a menina da cidade fica em sua casa.
— Se assim for, já prometi dois arráteis de cera ao Senhor dos Passos; mas não me diz o coração que vossa senhoria faça o que diz...
— Muito agradecido lhe estou pelo bem que me deseja - disse Simão, comovido. - Não sei o que lhe fiz para lhe merecer a sua amizade.
— Basta ver o que o seu paizinho fez pelo meu - disse ela, limpando as lágrimas. - O que seria de mim, se ele me faltasse, e se fosse à forca como toda a gente dizia!... Eu era ainda muito nova quando ele estava na enxovia. Teria treze anos; mas estava resolvida a atirar-me ao poço, se ele fosse condenado à morte. Se o degredassem, então ia com ele; ia morrer onde ele fosse morrer. Não há dia nenhum que eu não peça a Deus que dê a seu pai tantos prazeres como estrelas tem o céu. Fui de propósito à cidade para beijar os pés à sua mãezinha, e vi suas manas, e uma, que era a mais nova, deu-me uma saía de lapím, que eu ainda ali tenho guardada como uma relíquia. Depois, cada vez que ia à feira, dava uma grande volta para ver se acertava de encontrar a senhora D. Ritinha à janela; e muitas vezes vi o senhor Simão. E talvez não saiba que eu estava a beber na fonte quando vossa senhoria, há dois para três anos8 deu muita pancada nos criados, que era mesmo um rebuliço que parecia o fim do mundo. Eu vim contar ao pai. e ele caiu ao chão a dar risadas como um doido... Depois nunca mais o vi senão quando vossa senhoria entrou com o tio de Coimbra; mas já sabia que vinha para esta desgraça. porque tinha tido um sonho, em que via muito sangue, e eu estava a chorar porque via uma pessoa muito minha amiga a cair numa cova muito funda...
— Isso são sonhos, Mariana!...
— São sonhos, são; mas eu nunca sonhei nada que não acontecesse. Quando o meu pai matou o almocreve, tinha eu sonhado que o via a dar um tiro noutro homem; antes de minha mãe morrer, acordei eu a chorar por ela, e mais ainda viveu dois meses... A gente da cidade ri-se dos sonhos, mas Deus sabe o que isto é... Aí vem meu pai... Senhor dos Passos! Não vá ser alguma má nova!...
João da Cruz entrou com uma carta que recebera da pobre do costume. Enquanto Simão leu a carta escrita do convento, Mariana fitou os seus grandes olhos azuis no rosto do acadêmico, e, a cada contração da fronte dele, angustiavase-lhe a ela o coração. Não teve mão da sua ânsia, e perguntou:
— E noticia má?
— Tu és muito atrevida, rapariga! - disse João da Cruz.
— Não é, não - atalhou o estudante. - Não é má noticia, Mariana, Senhor João. deixe-me ter na sua filha uma amiga, que os desgraçados é que sabem avaliar os amigos.
— Isso é verdade; mas eu não me atrevia a perguntar o que a carta diz.
— Nem eu perguntei, meu pai; foi porque me pareceu que o senhor Simão estava aflito quando lia.
— E não se enganou - tornou o doente, voltando-se para o ferrador. - O pai arrastou Teresa ao convento.
— Sempre é patife duma vez! - disse o ferrador, fazendo com os braços instintivamente um movimento de quem aperta às mãos um pescoço.
Neste, lance, um observador pespícaz veria luzir nos olhos de Mariana um clarão de inocente alegria.
Simão sentou-se, e escreveu sobre uma cadeira, que Mariana espontaneamente lhe chegou, dizendo:
— Enquanto escreve, vou olhar pelo caldinho, que está a ferver.
"E necessário arrancar-te daí - dizia a carta de Simão. - Esse convento há de ter uma evasiva. Procura-a, e dize-me a noite e a hora em que devo esperar-te. Se não puderes fugir, essas portas hão de abrir-se diante da minha cólera. Se daí te mandarem para outro convento mais longe, avisa-me, que eu irei, sozinho ou acompanhado, roubar-te ao caminho. É indispensável que te refaças de ânimo para te não assustarem os arrojos da minha paixão. És minha! Não sei de que me serve a vida, se a não sacrificar a salvar-te. Creio em ti, Teresa, creio. Ser-me-ás fiel na vida e na morte. Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia quando o poder paternal é uma afronta. Escreve-me a toda a hora que possas. Eu estou quase bom. Dize-me uma palavra, chama-me, e eu sentirei que a perda do sangue não diminui as forças do coração".
Simão pediu a sua carteira, tirou dinheiro em prata, deu-o ao ferrador, e recomendou-lhe que o entregasse à pobre com a carta.
Depois ficou relendo a de Teresa, e recordando-se da resposta que dera.
Mestre João foi à cozinha, e disse a Mariana:
— Desconfio de uma coisa, rapariga.
— O que é, meu pai?
—