Romancistas Essenciais - Coelho Neto. August Nemo
Paulo, entretido, acompanhava as manobras quando se lembrou do Mamede. Lançou um olhar rápido ao relógio da estação - eram oito e meia. Foi-se lentamente até ao portão do parque, sempre a ouvir a música guerreira que estrugia como um hino forte à luz magnífica do sol.
As aléias estavam ainda úmidas e marcadas de pegadas, mas que frescor na folhagem! O lago, liso e cristalino, refletia o céu e um ganso, alvo de neve, nadava sem mesmo frisar a água dormida. O relvado cintilava emperlado de gotas límpidas e um aroma silvestre de bosque virgem saturava o ar fino.
Ele seguia contemplativo, sentindo o hálito das árvores, cercado pela vegetação forte, refeita com a rega farta da noite.
Passarinhos cantavam nos ramos, iam dum a outro, perseguindo-se; uniam-se no ar como trocando beijos e lá iam, de novo, juntos, d'asas frementes, metiam-se num meandro folhudo, onde, por certo, tinham o ninho agasalhado. Folhas caíam girogirando, flores murchas manchavam a relva, amareleciam ou ensangüentavam as alamedas.
Num banco um casal espairecia vendo o filho, um pequenito enfezado, ir e vir, arrastando a bengala, a fazer garatujas na areia. Súbito, porém, um som rouco e fanho de buzina e um retinir de tímpano alarmaram os dois felizes: o homem levantou-se, tomou o petiz nos braços, mas não teve tempo de voltar ao banco porque dois ciclistas, curvados sobre as máquinas, pedalando com fúria, passaram rápidos, com uma leve crepitação da areia.
Homens caminhavam passo a passo, como convalescentes e uma velha negra, abordoada a um pau, trêmula e tarda, passou com resmungos, num solilóquio de idiota, a cabeça toda branca, a pele engelhada, os olhos sumidos, enevoados no fundo das órbitas. Paulo chegava à praça central quando alguém lhe falou. Era um vizinho, empregado no Correio:
— Por aqui?
— É verdade.
— Os seus, bons?
— Graças a Deus. E os seus?
— Assim... - tocou no boné e seguiu ligeiro, gingando. Outros ciclistas deslizavam, uns céleres, como em vôo rasteiro, outros lentamente, ziguezagueando, oscilando ora à direita, ora à esquerda, esbaforidos, suados.
Bem felizes eram aqueles que por ali andavam descuidados! Para eles a natureza ria, o sol era alegre, jacundos os passarinhos, as flores obrantes e no sorriso de enlevo manifestavam a alegria de viver. Tudo, em torno, acenava-lhes afortunadamente. Só ele ia magoado, com a alma denegrida, fugindo aos homens, receoso das próprias coisas, porque aquelas mesmas árvores, aquele mesmo céu, aqueles mesmos pássaros pareciam recebê-lo com ironia pungente vendo-o infeliz, toldando com a sua tristeza a alacridade daquela manhã triunfal.
Um velho maltrapilho cochilava num banco, sob a ramagem verde e basta duma árvore em flor, com o cajado entre as mãos engelhadas. Era um triste, talvez, tinha também o seu drama; mas abriu os olhos lentamente, cravou-os no céu e, como um sino ressoasse perto, sonoro e grave, tirou o chapéu desabado, descansou-o no banco, persignou-se e, baixando a cabeça branca, de emaranhados e amarelecidos cabelos, ficou imóvel.
Dominado por aquela figura venerável de crente, Paulo descobriu-se, mas com vergonha dos transeuntes, que o podiam tomar por um carola, pôs-se a passar a mão pelos cabelos - no íntimo, porém, fazia votos a Deus, àquele Deus de Misericórdia que a voz grave do sino recordava no esplendor da manhã.
Vivamente outros sinos, mais límpidos, bimbalharam em festivo repique, e lá iam os devotos ao som do reclamo, como ovelhas correndo à buzina do pastor, por entre os pedrouços e a urze brava do monte, aos quais bem podem ser comparadas as agruras da vida.
Quando chegou ao portão, em frente aos Bombeiros, teve de recuar à zoada das trompas de outros ciclistas, que vinham em caravana, apostando, uns mais avançados, rindo, galhofando em tom de vitória. Atravessou a rua e, fustigado pela preocupação, amiudou os passos.
Subindo a Rua do Senado por entre o casario pobre, vendo às janelas os bustos arremangados das caseiras e, na calçada, os homens que gozavam a sua manhã de folga, em mangas de camisa, os braços nus, guedelhudos e fortes, tinha, por vezes, palpites de que a irmã estava refugiada em uma daquelas casas. Ouvia-lhe o riso, reconhecia-lhe o timbre da voz fresca e lânguida; voltava os olhos e, rapidamente, devassava interiores modestos.
Num botequim, junto à barreira esbarrondada, abancados a mesas sórdidas, preguiçavam madraços, e, mais adiante, numa casa de pasto, escura e lôbrega, ao longo de compridos bancos, trabalhadores almoçavam chalrando estrondosamente.
Enxames de moscas esvoaçavam na calçada e um velho, sentado no limiar de uma casa, com a perna esticada, envolta em estropalho imundo, alrotava, estendendo a mão aos transeuntes. Paulo atirou-lhe uma moeda.
Ganhando o aclive da Rua do Riachuelo, seguiu lentamente, curvado, chegando ao alto alagado em suor.
IV
A estalagem em que morava o Mamede, antiga chácara senhorial, abria por um portão nobre, com leões de louça nos pilares de pedra. Era um imenso e rumoroso viveiro, alveolado de renques de casotas baixas, de porta e janela, ao fundo de um jardinete, em umas escavacado e seco, em outras caprichosamente plantado até a cerca de ripas que o limitava.
Largo, vasto, subindo em capinzal para a montanha, o terreno era o logradouro comum, gramado em quadros ou com coradouros de pedra sob uma verdadeira teia de cordas onde trapejavam roupas.
No aclive, encostado à barranca, havia um estábulo e mais ao fundo, num cercado de pau-a-pique, muares soltos espojavam-se entre carroças tombadas sobre os varais. Tinas jaziam acanteiradas em fila ou de borco. Sentia-se o descanso domingueiro.
Só uma mulher, vermelha, anafada, com um largo chapéu de homem à cabeça, as saias arrepanhadas na cintura grossa, mostrando as pernas fortes e os pés rijos, em tamancos, ensaboava, jogando violentamente o busto, rebolindo os quadris nutridos. Os seios desabavam-se-lhe, moles e trêmulos, no papo da camisa e os seus braços másculos mergulhavam e reapareciam enluvados d'espuma.
Um mulato calvo, d'óculos, quase no limiar de um dos casebres, aproveitando a luz, cosia à máquina, cantarolando; e uma negra, sentada acaçapadamente, com o pito nos beiços, chupava fumaças distraídas, olhando o céu azul.
Ao fundo, alta e agreste, a montanha impunha-se e, por um caminho íngreme, escavado, uma cabra, aos galões, galgava o alcândor.
Fortum acre de barrela saturava o ar. Poças d'água cinzenta alumiavam ao sol em todo o vasto enxurdeiro.
Paulo sabia que a casa do Mamede era uma das últimas, querendo, porém, certificar-se perguntou a um pequeno que, em camisola e descalço, arrastava um comboio feito com caixas de fósforos. O interrogado partiu correndo e estendeu o braço indicando uma casinha pintada de azul, a cuja frente, além da cerca de ripas, verdejava uma latada.
— É ali.
Paulo agradeceu e encaminhou-se saltando um rego onde dormia, estagnada, uma água negra, velada e pútrida. Antes de bater esteve a olhar, como à espera de alguém. Cantavam na vizinhança, em tom monótono de acalento. Adiantou-se e bateu, tímido a principio, depois forte, bradando:
— Ó de casa!
— Quem é? - rosnaram de dentro, e um mulato espadaúdo, picado de bexigas, em mangas de camisa, cabelo em poupa, apareceu à porta, sungando as calças. Logo que viu o estudante abriu os braços, com alegria ruidosa:
— Ó nhozinho! Que milagre! Vosmecê por aqui? - E, sério, inclinando-se, com o sobrolho carregado: Alguma novidade lá em casa?
Paulo afirmou com a cabeça e o mulato, boquiaberto, num assombro, ficou algum tempo a mirá-lo; de repente, porém, passando-lhe o braço pelas costas, chamou-o: Mas entre, nhozinho; entre. Fez uma volta repentina na soleira e, sorrindo, com os dentes muito brancos, observou, pernóstico: não repare, isto é casa de pobre... e Ritinha ainda nem fez a limpeza.
Paulo encolheu os ombros e, deixando o chapéu a um canto, sentou-se numa cadeira tosca, que tinha o forro de palha muito esgaçado.
— Vai um golinho de