.
tivemos tempo para assistir ao filme que projetam.
Trabalhamos por muitas horas e chegamos exaustas.
Abro a geladeira e já consigo sentir o gosto do lombo que Valentina trouxe da Argentina e guardou no gelo seco durante o voo.
Na cozinha, vendo a nova faca de cerâmica e os saquinhos de chá verde, adivinho a causa da rebeldia dos cachos de Ludovica: o voo para Tóquio dura pelo menos doze horas, nem mesmo seus penteados sempre impecáveis resistiram. Ludovica, antes de se despedir para o tão necessário repouso pós-voo, deu suas impressões sobre aquela cidade tão frenética que contrasta com a delicadeza de seus habitantes, com aquela extrema timidez que os leva às vezes a rir cobrindo a boca, com seus milhares de reverências ao saudar alguém. Ficou impressionada com aqueles vertiginosos arranha-céus, com as multidões de carros e pedestres nas ruas, com a escrita incompreensível dos ideogramas japoneses. Contou que foi ao mercado de peixes de Tsukiji, o maior do mundo, tão limpo e organizado, que viu papelarias de nove andares e bares que comportam no máximo cinco clientes. Contou que se perdeu em Harajuku, um quarteirão de moda na pequena rua Takeshita, entre pequenas lojas da moda frequentadas por jovens com roupas extravagantes. Descobriu que existem restaurantes chamados Maid Café, onde as atendentes escolhem um cliente e demonstram sua submissão, o massageiam e entretêm com danças e canções, como as antigas gueishas. Nos Butler Cafés, os mordomos atendem mulheres de modo similar. Também nos contou que os preços de máquinas fotográficas e filmadoras novas eram muito bons, mas que também era possível encontrá-las usadas em perfeitas condições, bem como as últimas tecnologias que nem tinham chegado à Itália. Disse também que os relógios de marcas famosas custavam até 35% menos do que nas lojas italianas, e que era possível encontrá-los usados também. Disse, por fim, antes de cair na cama de cansaço, que, em um restaurante chamado Al dente, o espaguete era espetacular, quase melhores do que os italianos, e que adorou a massagem com quiroprata que fez em Shinjuku.
Aprendemos algumas regras simples mas necessárias, que eu anotei em uma folha de papel e prendi na geladeira com o ímã que Valentina comprou em Buenos Aires, com dois dançarinos de tango e a frase “Bienvenido a Argentina”, o primeiro de uma série de ímãs que vinham de todas as partes do mundo que acabaram enterrando a geladeira e escondendo aquele lembrete que no começo foi muito útil para todas nós. Nos anos seguintes, passou a fazer parte de mim.
Ele dizia:
"O que não fazer:
Não dar a impressão de estar com pressa.
Nunca falar com os colegas sobre assuntos pessoais durante o serviço.
Evitar expressões de irritação ou mau-humor, assim como comportamento inconstante.
Tentar evitar frases imperativas como 'Feche a mesinha!', 'Cinto de segurança!' ou 'Celular!', mas convidar gentilmente o passageiro a seguir as ordens.
Não falar com os colegas em voz alta.
Tentar encontrar lugares próximos para pessoas que viajam juntas, fazendo eventuais trocas de assento, e sugerir que cheguem ao check-in com alguma antecedência para ter mais opções de assento.
‘Lembrete’
A- Requisitos básicos: capacidade de garantir a segurança a bordo, responsabilidade e profissionalismo.
B - O passageiro precisa de conforto psicológico, proteção do estresse e do medo de voar.
C - Não pode faltar: cortesia, atenção e disponibilidade durante toda a duração do voo.”
Compreendemos, com o tempo, que nosso comportamento é fundamental para resolver problemas a bordo. Alguns inconvenientes eram alvo de críticas dos passageiros e exigiam alguma intervenção. Conseguir comunicar-se claramente e tentar resolver as dificuldades e problemas que apareciam a bordo nem sempre era fácil. Era sempre necessário levar em conta a gravidade do problema, o contexto, o caráter e o estado emocional do indivíduo com quem nos relacionávamos, porque não se conhece nunca a pessoa com quem nos relacionamos a bordo, as situações que poderiam acontecer e as possibilidades de agravamento que poderiam surgir posteriormente.
Com calma e determinação, era fundamental ajudar, transformando o problema do outro em problema nosso, apresentando-se como uma referência segura, compreendendo as razões do ocorrido para resolvê-lo.
Era importante ouvir o que dizia o outro, mas também olhar a situação de maneira objetiva, informar e explicar com sensibilidade e responsabilidade, indicando com transparência as possíveis soluções.
Com frequência, a insatisfação do cliente era influenciada por fatores externos, como atrasos, conexões complicadas, embarques desordenados, aviões desconfortáveis ou serviço de limpeza apressado. Portanto, um comportamento compreensivo e propositivo podia ajudar a resolver os problemas.
Medo de voar
Em um dia de outubro, Eva ficou insuportável depois das discussões que costumávamos ter sobre a arrumação da casa, porque as repreensões eram majoritariamente voltadas a ela.
Eu ouvia os palavrões e as coisas que ela dizia em napolitano, que contrastavam tanto com seu falar comumente desprovido de inflexões dialetais.
Seriam as radiações cósmicas, os campos magnéticos ou o barulho dos aviões responsáveis por aquela mudança de humor?
No meio-tempo, Ludovica decidiu marcar uma massagem ayurvédica para fortalecer os músculos, relaxar o corpo e estimular a circulação com a esteticista indiana que alugou um espaço na vizinhança, e nos informou que, a partir de segunda-feira, estaria de dieta, pois Eva tinha dito que ultimamente parecia ter ganhado peso.
Eu estava aninhada no sofá, com roupas de ficar em casa e um suéter bege masculino; uma coberta sobre as pernas me protegia dos primeiros ventos do inverno, e eu tentava ter um momento de relaxamento.
Não conseguia dormir porque a adrenalina do pós-voo ainda não tinha passado.
De repente, me veio a lembrança do dia anterior.
Eu tinha conhecido a bordo o casal Lucherini: a senhora Lucrezia e o doutor Massimo.
Durante o embarque, logo percebi alguns sinais de tensão em seu comportamento. Eles começavam a tomar assento, com as costas um pouco recurvadas, caminhando rigidamente, com o queixo baixo e uma atitude passiva e dócil.
Os braços dele estavam retos e estendidos rigidamente ao lado do corpo, os dela estavam cruzados, quase se protegendo instintivamente, e ambos olhavam ao redor, como se estivessem procurando algo, uma forma de escapar. As pupilas de ambos estavam completamente dilatadas, como se sofressem de midríase.
Os movimentos do corpo eram lentos, e eu percebia que eles me direcionavam um leve sorriso, que eu retribuía com graça.
Estavam rígidos na poltrona, apoiados na borda externa da cadeira, com um pé para frente e outro para trás, como se quisessem escapar. Mudavam constantemente de posição, como se a poltrona estivesse em chamas.
Meu responsável, que parecia um sósia de James Dean, sempre alegre mas com uma tristeza quase imperceptível no olhar, me fez um sinal para cuidar deles.
Aproximei-me do casal, perguntando se precisavam de minha assistência, e a senhora disse que não, enquanto sua cabeça dizia sim, e começou a balançar o busto, prendendo a respiração como se não quisesse ser notada.
Logo me dei conta da situação. A senhora sofria de um distúrbio bastante comum, que cria diversos problemas e ataca de forma indiscriminada: o medo de voar.
Eu tinha aprendido no curso como me comportar nesses casos: o medo excessivo pode degringolar em pânico, o temor pode ficar insuperável e levar até à total perda do controle.
Os sintomas são vertigem, náusea, nó na garganta, palpitações, suor frio, taquicardia.
Embora eles não tivessem pedido, dei alguns conselhos sobre o que fazer caso sentissem algum mal-estar. Reprimir o nervosismo