Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial). Machado de Assis

Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial) - Machado de Assis


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      A pêndula

      Saí dali a saborear o beijo. Não pude dormir; estirei-me na cama, é certo, mas foi o mesmo que nada. Ouvi as horas todas da noite. Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da pêndula fazia-me muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia dizer a cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então um velho diabo, sentado entre dois sacos, o da vida e o da morte, a tirar as moedas da vida para dá-las à morte, e a contá-las assim:

      — Outra de menos...

      — Outra de menos...

      — Outra de menos...

      — Outra de menos...

      O mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que ele não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos. Invenções há, que se transformam ou acabam; as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo e perpétuo. O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há de ter um relógio na algibeira, para saber a hora exata em que morre.

      Naquela noite não padeci essa triste sensação de enfado, mas outra, e deleitosa. As fantasias tumultuavam-me cá dentro, vinham umas sobre outras, à semelhança de devotas que se abalroam para ver o anjo-cantor das procissões. Não ouvia os instantes perdidos, mas os minutos ganhados. De certo tempo em diante não ouvi coisa nenhuma, porque o meu pensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janela fora e bateu as asas na direção da casa de Virgília. Aí achou no peitoril de uma janela o pensamento de Virgília, saudaram-se e ficaram de palestra. Nós a rolarmos na cama, talvez com frio, necessitados de repouso, e os dois vadios ali postos, a repetirem o velho diálogo de Adão e Eva.

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      O velho diálogo de Adão e Eva

      BRAZ CUBAS

      . . . . ?

      VIRGILIA

      . .

      BRAZ CUBAS

      . . . . . . . . .

      . . .

      VIRGILIA

      . . . !

      BRAZ CUBAS

      . .

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      O momento oportuno

      Mas, com a breca! quem me explicará a razão desta differença? Um dia vimo-nos, tratámos o casamento, desfizemol-o e separamo-nos, a frio, sem dor, porque não houvera paixão nenhuma; mordeu-me apenas algum despeito e nada mais. Correm annos, torno a vel-a, damos tres ou quatro giros de valsa, e eis-nos a amar um ao outro com delirio. A belleza de Virgilia chegára, é certo, a um alto gráu de apuro, mas nós eramos substancialmente os mesmos, e eu, á minha parte, não me tornára mais bonito nem mais elegante. Quem me explicará a razão dessa differença?

      A razão não podia ser outra senão o momento opportuno. Não era opportuno o primeiro momento, porque, se nenhum de nós estava verde para o amor, ambos o estavamos para o nosso amor: distincção fundamental. Não ha amor possivel sem a opportunidade dos sujeitos. Esta explicação achei-a eu mesmo, dous annos depois do beijo, um dia em que Virgilia se me queixava de um pintalegrete que lá ia e tenazmente a galanteava.

      — Que importuno! dizia ella fazendo uma careta de raiva.

      Estremeci, fitei-a, vi que a indignação era sincera; então occorreu-me que talvez eu tivesse provocado alguma vez aquella mesma careta, e comprehendi logo toda a grandeza da minha evolução. Tinha vindo de importuno a opportuno.

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      Destino

      Sim, senhor, amavamos. Agora, que todas as leis sociaes nol-o impediam, agora é que nos amavamos devéras. Achavamo-nos jungidos um ao outro, como as duas almas que o poeta encontrou no Purgatorio:

      Di pari, come buoi, che vanno a giogo;

      e digo mal, comparando-nos a bois, porque nós eramos outra especie de animal menos tardo, mais velhaco e lascivo. Eis-nos a caminhar sem saber até onde, nem porque estradas escusas; problema que me assustou, durante algumas semanas, mas cuja solução entreguei ao destino. Pobre Destino! Onde andarás agora, grande procurador dos negocios humanos? Talvez estejas a criar pelle nova, outra cara, outras maneiras, outro nome, e não é impossivel que... Já me não lembra onde estava... Ah! nas estradas escusas. Disse eu commigo que já agora seria o que Deus quisesse. Era a nossa sorte amar-nos; se assim não fora, como explicariamos a valsa e o resto? Virgilia pensava a mesma cousa. Um dia, depois de me confessar que tinha momentos de remorsos, como eu lhe dissesse que, se tinha remorsos, é porque me não tinha amor, Virgilia cingiu-me com os seus magnificos braços, murmurando:

      — Amo-te, é a vontade do céu.

      E esta palavra não vinha á toa; Virgilia era um pouco religiosa. Não ouvia missa aos domingos, é verdade, e creio até que só ia ás igrejas em dia de festa, e quando havia logar vago em alguma tribuna. Mas rezava todas as noites, com fervor, ou, pelo menos, com somno. Tinha medo ás trovoadas; nessas occasiões, tapava os ouvidos, e resmoneava todas as orações do catecismo. Na alcova della havia um oratoriosinho de jacarandá, obra de talha, de tres palmos de altura, com tres imagens dentro; mas não falava delle ás amigas; ao contrario, taxava de beatas as que eram só religiosas. Algum tempo desconfiei que havia nella certo vexame de crer, e que a sua religião era uma especie de camisa de flanella, preservativa e clandestina; mas evidentemente era engano meu.

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      Confidência

      O Lobo Neves, a principio, mettia-me grandes sustos. Pura illusão! Como adorasse a mulher, não se vexava de m’o dizer muitas vezes; achava que Virgilia era a perfeição mesma, um conjunto de qualidades solidas e finas, amoravel, elegante, austera, um modelo. E a confiança não parava ahi. De fresta que era, chegou a porta escancarada. Um dia confessou-me que trazia uma triste carcoma na existencia; faltava-lhe a gloria publica. Animei-o; disse-lhe muitas cousas bonitas, que elle ouviu com aquella uncção religiosa de um desejo que não quer acabar de morrer; então comprehendi que a ambição delle andava cançada de bater as azas, sem poder abrir o vôo. Dias depois disse-me todos os seus tedios e desfallecimentos, as amarguras engolidas, as raivas sopitadas; contou-me que a vida politica era um tecido de invejas, despeitos, intrigas, perfidias, interesses, vaidades. Evidentemente havia ahi uma crise de melancolia; tratei de combatel-a.

      — Sei o que lhe digo, replicou-me com tristeza. Não póde imaginar o que tenho passado. Entrei na politica por gosto, por familia, por ambição, e um pouco por vaidade. Já vê que reuni em mim só todos os motivos que levam o homem á vida publica; faltou-me só o interesse de outra natureza. Vira o theatro pelo lado da platéa; e, palavra, que era bonito! Soberbo scenario, vida, movimento e graça na representação. Escripturei-me; deram-me um papel que... Mas para que o estou a fatigar com isto? Deixe-me ficar com as minhas amofinações. Creia que tenho passado horas e dias... Não ha constancia de sentimentos, não ha gratidão, não ha nada... nada... nada...

      Calou-se, profundamente abatido, com os olhos no ar, parecendo não ouvir cousa nenhuma, a não ser o echo de seus proprios pensamentos. Após alguns instantes, ergueu-se e estendeu-me a mão: — O senhor ha de rir-se de mim, disse elle; mas desculpe aquelle desabafo; tinha um negocio, que me mordia o espirito. E ria, de um geito sombrio e triste; depois pediu-me que não referisse a ninguem o que se passara entre nós; ponderei-lhe que a rigor não se passara nada. Entraram dous deputados e um chefe politico da parochia. O Lobo Neves recebeu-os com alegria, a principio


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