Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial). Machado de Assis
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A casinha
Jantei e fui á casa. Lá achei uma caixa de charutos, que me mandára o Lobo Neves, embrulhada em papel de seda, e ornada de fitinhas côr de rosa. Entendi, abri-a, e tirei este bilhete:
«Meu B...
Desconfiam de nós; tudo está perdido; esqueça-me para sempre. Não nos veremos mais. Adeus; esqueça-se da infeliz
V...a»
Foi um golpe esta carta; não obstante, apenas fechou a noite, corri á casa de Virgilia. Era tempo; estava arrependida. Ao vão de uma janella, contou-me o que se passára com a baroneza. A baroneza disse-lhe francamente que se falára muito, no theatro, na noite anterior, a proposito da minha ausencia do camarote de Lobo Neves; tinham commentado as minhas relações na casa; em suma, eramos objecto da suspeita publica. Conclui dizendo que não sabia o que fazer.
— O melhor é fugirmos, insinuei.
— Nunca, respondeu ella abanando a cabeça.
Vi que era impossivel separar duas cousas que no espirito della estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração publica. Virgilia era capaz de eguaes e grandes sacrificios para conservar ambas as vantagens; e a fuga só lhe deixava uma. Talvez senti alguma cousa semelhante a despeito; mas as comoções daquelles dous dias eram já muitas, e o despeito morreu depressa. Vá lá; arranjemos a casinha.
Com effeito, achei-a, dias depois, expressamente feita, em um recanto da Gamboa. Um brinco! Nova, caiada de fresco, com quatro janellas na frente e duas de cada lado, — todas com venezianas côr de tijolo, — trepadeira nos cantos, jardim na frente; mysterio e solidão. Um brinco!
Convencionámos que iria morar alli uma mulher, conhecida de Virgilia, em cuja casa fora costureira e aggregada. Virgilia exercia sobre ella verdadeira fascinação. Não se lhe diria tudo; ella aceitaria facilmente o resto.
Para mim era aquillo uma situação nova do nosso amor, uma apparencia do posse exclusiva, de dominio absoluto, alguma cousa que me faria adormecer a consciencia o resguardar o decoro. Já estava cançado das cortinas do outro, das cadeiras, do tapete, do canapé, de todas essas cousas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa duplicidade. Agora podia evitar os jantares frequentes, o chá de todas as noites, emfim a presença do filho delles, meu complice e meu inimigo. A casa resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria á porta; — dalli para dentro era o infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem baronezas, sem olheiros, sem escutas, — um só mundo, um só casal, uma só vida, uma só vontade, uma só affeição, — a unidade moral de todas as cousas pela exclusão das que me eram contrarias.
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O vergalho
Taes eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquelle Valongo fóra, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-m’as um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas unicas palavras:
— «Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão! » Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada supplica, respondia com uma vergalhada nova.
— Toma, diabo! dizia elle; toma mais perdão, bebado!
— Meu senhor! gemia o outro.
— Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos ceus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudencio, — o que meu pae libertára alguns annos antes. Cheguei-me; elle deteve-se logo e pediu-me a benção; perguntei-lhe se aquelle preto era escravo delle.
— E, sim, nhonhô.
— Fez-te alguma cousa?
— É um vadio e um bebado muito grande. Ainda hoje deixei elle na quitanda, em quanto eu ia lá embaixo na cidade, e elle deixou a quitanda para ir na venda beber.
— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bebado!
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjecturas. Segui caminho, a cavar cá dentro uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria materia para um bom capitulo, e talvez alegre. Eu gósto dos capitulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episodio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que metti mais dentro a faca do raciocinio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudencio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, — transmittindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; elle gemia e soffria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia, trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que elle se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as subtilezas do maroto!
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Um grão de sandice
Este caso faz-me lembrar um doudo que conheci. Chamava-se Romualdo e dizia ser Tamerlão. Era a sua grande e unica mania, e tinha uma curiosa maneira de a explicar.
— Eu sou o illustre Tamerlão, dizia elle. Outr’ora fui Romualdo, mas adoeci, e tomei tanto tartaro, tanto tartaro, tanto tartaro, que fiquei Tartaro, e até rei dos Tartaros. O tartaro tem a virtude de fazer Tartaros.
Pobre Romualdo! A gente ria da resposta, mas é provavel que o leitor não se ria, e com razão; eu não lhe acho graça nenhuma. Ouvida, tinha algum chiste; mas assim contada, no papel, e a proposito de um vergalho recebido e transferido, força é confessar que é muito melhor voltar á casinha da Gamboa; deixemos os Romualdos e Prudencios.
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D. Plácida
Voltemos á casinha. Não serias capaz de lá entrar hoje, curioso leitor; envelheceu, ennegreceu, apodreceu, e o proprietario deitou-a abaixo para substituil-a por outra, tres vezes maior, mas juro-te que muito menor que a primeira. O mundo era estreito para Alexandre; um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas.
E vejam agora a neutralidade deste globo, que nos leva, atravez dos espaços, como uma lancha de naufragos, que vae dar á costa: dorme hoje um casal de virtudes no mesmo espaço de chão que soffreu um casal de peccados. Amanhã pode lá dormir um ecclesiastico, depois um assassino, depois um ferreiro, depois um poeta, e todos abençoarão esse canto de terra, que lhes deu algumas illusões.
Virgilia fez daquillo um brinco; designou as alfaias mais idoneas, e dispol-as com a intuição esthetica da mulher elegante; eu levei para lá alguns livros; e tudo ficou sob a guarda de D. Placida, supposta, e, a certos respeitos, verdadeira dona da casa.
Custou-lhe muito a aceitar a casa; farejára a intenção, e doia-lhe o officio; mas afinal cedeu. Creio que chorava, a principio: tinha nojo de si mesma. Ao menos, é certo que não levantou os olhos para mim durante os primeiros dous mezes; falava-me com elles baixos, séria, carrancuda, ás vezes triste. Eu queria angarial-a, e não me dava por offendido, tratava-a com carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a benevolencia, depois a confiança. Quando obtive a confiança, imaginei uma historia pathetica dos meus amores com Virgilia, um caso anterior ao casamento, a resistencia do pae, a dureza do marido, e não sei que outros toques de novella. D. Placida não rejeitou uma só pagina da novella; aceitou-as todas. Era uma necessidade da consciencia. Ao cabo de seis mezes quem nos visse a todos tres juntos diria que D. Placida era minha sogra.
Não fui ingrato; fiz-lhe um peculio de cinco contos,