Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial). Machado de Assis
outras tantas para baixo. E continuei a pensar que, na verdade, era feliz. Amava-me uma mulher, tinha a confiança do marido, ia por secretario de ambos, e reconciliava-me com os meus. Que podia desejar mais, em vinte e quatro horas?
Nesse mesmo dia, tratando de apparelhar os animos, comecei a espalhar que talvez fosse para o norte, como secretario de provincia, afim de realizar certos designios politicos, que me eram pessoaes. Disse-o na rua do Ouvidor, repeti-o no dia seguinte, no Pharoux e no theatro. Alguns, ligando a minha nomeação á do Lobo Neves, que já andava em boatos, sorriam maliciosamente, outros batiam-me no hombro. No theatro disse-me uma senhora que era levar muito longe o amor da esculptura. Referia-se ás bellas fórmas de Virgilia.
Mas a allusão mais rasgada que me fizeram foi em casa de Sabina, tres dias depois. Fel-a um certo Garcez, velho cirurgião, pequenino, trivial e grulha, que podia chegar aos setenta, aos oitenta, aos noventa annos, sem adquirir jamais aquella compostura austera, que é a gentileza do ancião. A velhice ridicula é, porventura, a mais triste e derradeira sorpresa da natureza humana.
— Já sei, desta vez vae ler Cicero, disse-me elle, ao saber da viagem.
— Cicero! exclamou Sabina.
— Pois então? Seu mano é um grande latinista. Traduz Virgilio de relance. Olhe que é Virgilio, e não Virgilia... não confunda...
E ria, de um riso grosso, rasteiro e frivolo. Sabina empallideceu e olhou para mim, receiosa de alguma replica; mas sorriu, quando me viu sorrir, e voltou o rosto para disfarçal-o. As outras pessoas olhavam-me com um ar de curiosidade, indulgencia e sympathia; era transparente que não acabavam de ouvir nenhuma novidade. O caso dos meus amores andava mais publico do que eu podia suppor. E entretanto sorri, um sorriso curto, fugitivo e guloso, — palreiro como as pegas de Cintra. Virgilia era um bello erro, e é tão facil confessar um bello erro! Costumava ficar carrancudo, a principio, quando ouvia alguma allusão aos nossos amores; mas, palavra de honra! sentia cá dentro uma impressão suave e linsongeira. Uma vez, porém, aconteceu-me sorrir, e continuei a fazel-o das outras vezes. Não sei se ha ahi algum Hobbes ou Spinoza, que explique o phenomeno. Eu explico-o assim: a principio, o contentamento, sendo interior, era por assim dizer o mesmo sorriso, mas abotoado; andando o tempo, desabotou-se em flor, e appareceu aos olhos do proximo. Simples questão de botanica.
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13
O Cotrim tirou-me daquelle gozo, levando-me á janella. — Você quer que lhe diga uma cousa? perguntou elle; — não faça essa viagem; é insensata, é perigosa.
— Porque?
— Você bem sabe porque, tornou elle: é, sobretudo, perigosa, muito perigosa. Aqui na côrte, um caso desses perde-se na multidão da gente e dos interesses; mas na provincia muda de figura; e tratando-se de personagens politicos, é realmente insensatez. As gazetas de opposição, logo que farejarem o negocio, passam a imprimil-o com todas as lettras, e ahi virão as chufas, os remoques, as alcunhas...
— Mas não entendo...
— Entende, entende; e, na verdade, seria bem pouco amigo nosso, se me negasse o que toda a gente sabe. Eu sei disso ha longos mezes. Repito, não faça semelhante viagem; supporte a ausencia, que é melhor, e evite algum grande escandalo e maior desgosto...
Disse isto, e foi para dentro. Eu deixei-me estar com os olhos no lampião da esquina, — um antigo lampião de azeite, — triste, obscuro e recurvado, como um ponto de interrogação. Que me cumpria fazer? Era o caso de Hamlet: ou dobrar-me á fortuna, ou lutar com ella e subjugal-a. Por outros termos: embarcar ou não embarcar. Esta era a questão. O lampião não me dizia nada. As palavras do Cotrim resoavam-me aos ouvidos da memoria, de um modo bem diverso do das palavras do Garcez. Talvez o Cotrim tivesse razão: mas podia eu separar-me de Virgilia?
Sabina veiu ter commigo, e perguntou-me em que estava pensando. Respondi que em cousa nenhuma, que tinha somno e ia para casa. Sabina esteve um instante calada. — O que você precisa, sei eu; é uma noiva. Deixe, que eu ainda arranjo uma noiva para você. Saí de lá oppresso, desorientado. Tudo prompto para embarcar, — espirito e coração, — e eis ahi me surge esse porteiro das conveniencias, que me pede o cartão de ingresso. Dei ao diabo as conveniências, e com ellas a constituição, o corpo legislativo, o ministerio, tudo.
No dia seguinte, abro uma folha politica e leio a noticia de que, por decretos de 13, tínhamos sido nomeados presidente e secretario da provincia de *** o Lobo Neves e eu. Escrevi immediatamente a Virgilia, e segui duas horas depois para a Gamboa. Coitada de D. Placida! Estava cada vez mais afflicta; perguntou-me se esqueceriamos a nossa velha, se a ausencia era grande e se a provincia ficava longe. Consolei-a; mas eu proprio precisava de consolações; a objecção do Cotrim affligia-me profundamente. Virgilia chegou dahi a pouco, lepida como uma andorinha; mas, ao ver-me triste, ficou muito seria.
— Que aconteceu?
— Vacillo, disse eu; não sei se devo aceitar...
Virgilia deixou-se cair, no canapé, a rir. — Porque? disse ella.
— Não é conveniente, dá muito na vista...
— Mas nós já não vamos.
— Como assim?
Contou-me que o marido ia recusar a nomeação, e por motivo que só disse a ella, pedindo-lhe o maior segredo; não podia confessal-o a ninguem mais. — É pueril, observou elle, é ridiculo; mas em summa, é um motivo poderoso para mim. E referiu-lhe que o decreto trazia a data de 13, e que esse numero significava para elle uma recordação funebre. O pae morreu n’um dia 13, treze dias depois de um jantar, em que havia treze pessoas. A casa em que morrera a mãe tinha o n. 13. Et cætera. Era um algarismo fatidico. Não podia allegar semelhante cousa ao ministro; dir-lhe-hia que tinha razões particulares para não aceitar. Eu fiquei como ha de estar o leitor, — um pouco assombrado com esse sacrificio a um numero; mas, sendo elle ambicioso, o sacrificio devia ser sincero... E ficavamos. Para alguma cousa ha de servir a superstição dos homens.
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O conflito
Numero fatidico, lembras-te que te abençoei muitas vezes? Assim tambem as virgens ruivas de Thebas deviam abençoar a egua, de ruiva crina, que as substituiu no sacrificio de Pelopidas, — uma donosa egua, que lá morreu, coberta de flores, sem que ninguem lhe désse nunca uma palavra de saudade. Pois dou-t’a eu, egua piedosa, não só pela morte havida, como porque, entre as donzellas escapas, não é impossivel que figurasse uma avó dos Cubas... Numero fatidico, tu foste a nossa salvação. Não me confessou o marido a causa da recusa; disse-me tambem que eram negocios particulares, e o rosto serio, convencido, com que eu o escutei, fez honra á dissimulação humana. Elle é que mal podia encobrir a tristeza profunda que o minava; falava pouco, absorvia-se, mettia-se em casa, a ler. Outras vezes recebia, e então conversava e ria muito, com estrepito e affectação. Opprimiam-n’o duas cousas, — a ambição, que um escrupulo desazára, e logo depois a duvida, e talvez o arrependimento, — mas um arrependimento, que viria outra vez, si se repetisse a hypothese, porque o fundo supersticioso existia. Duvidava da superstição, sem chegar a rejeital-a. Essa persistencia de um sentimento, que repugna ao mesmo individuo, era um phenomeno digno de alguma attenção. Mas eu preferia a pura ingenuidade de D. Placida, quando confessava não poder ver um sapato voltado para o ar.
— Que tem isso? perguntava-lhe eu.
— Faz mal, era a sua resposta.
Isto somente, esta unica resposta, que valia para ella o livro dos sete sellos. Faz mal. Disseram-lhe isso em criança, sem outra explicação; e ella contentava-se com a certeza do mal. Já não acontecia a mesma cousa quando se falava de apontar uma estrella com o dedo; ahi sabia perfeitamente que era caso de crear uma verruga.
Ou verruga ou outra cousa, que valia isso, para quem não perde uma presidencia de provincia? Tolera-se uma superstição