Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial). Machado de Assis

Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial) - Machado de Assis


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desamparal-a, deixal-a, e saír; foi o que fiz.

      — Repito, a minha felicidade está nas tuas mãos, disse eu.

      Virgilia quiz agarrar-me, mas eu já estava fóra da porta. Cheguei a ouvir um proromper de lagrimas, e digo-lhes que estive a ponto de voltar, para as enxugar com um beijo; mas subjuguei-me e saí.

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      Compromisso de gato

      Não acabaria se houvesse de contar pelo miudo o que padeci nas primeiras horas. Vacillava entre um querer e um não querer, entre a piedade que me empuxava á casa de Virgilia e outro sentimento, — egoismo, supponhamos, — que me dizia: — Fica; deixa-a a sós com o problema, deixa-a que ella o resolverá no sentido do amor. Creio que essas duas forças tinham egual intensidade, investiam e resistiam ao mesmo tempo, com ardor, com tenacidade, e nenhuma cedia definitivamente. Ás rezes sentia um dentesinho de remorso; parecia-me que abusava da fraqueza de uma mulher amante e culpada, sem nada sacrificar nem arriscar de mim proprio; e, quando ia a capitular, vinha outra vez o amor, e me repetia o conselho egoista, e eu ficava irresoluto e inquieto, desejoso do a ver, e receioso de que a vista me levasse a compartir a responsabilidade da solução.

      Por fim interveiu um compromisso entre o egoismo e a piedade; eu iria vel-a em casa, e só em casa, em presença do marido, para lhe não dizer nada, á espera do effeito da minha intimação. Deste modo, poderia conciliar as duas forças. Agora, que isto escrevo, quer-me parecer que o compromisso era uma burla, que essa piedade era ainda um fórma de egoismo, e que a resolução de ir consolar Virgilia não passava de uma suggestão de meu proprio padecimento. Occorre-me a este proposito um naturalista, — não me lembra qual, — mas era um naturalista, — em quem li esta observação curiosa: «O gato não nos affaga, affaga-se em nós.» Vejo que eu fazia um compromisso de gato.

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      De secretário

      Na noite seguinte fui effectivamente á casa do Lobo Neves; estavam ambos, Virgilia muito triste, elle muito jovial. Juro que ella sentiu certo allivio, quando os nossos olhos se encontraram, cheios de curiosidade e ternura; e não direi o que senti, porque isso já ficou expresso no capitulo anterior, in fine. O Lobo Neves contou-me os planos que levava para a presidencia, as difficuldades locaes, as esperanças, as resoluções; estava tão contente! tão esperançado! Virgilia, ao pé da meza, fingia ler um livro, mas por cima da pagina olhava-me de quando em quando, interrogativa e ansiosa.

      — O peor, disse-me de repente o Lobo Neves, é que ainda não achei secretario.

      — Não?

      — Não, e tenho uma idéa.

      — Ah!

      — Uma idéa... Quer você dar um passeio ao norte? Não sei o que lhe disse.

      — Você é rico, continuou elle, não precisa de um magro ordenado; mas se quizesse obsequiar-me, ia de secretario commigo.

      Meu espirito deu um salto para traz, como se descobrisse uma serpente deante de si. Encarei o Lobo Neves, fixamente, imperiosamente, a ver se lhe apanhava algum pensamento occulto... Nem sombra disso; o olhar vinha direito e franco, a placidez do rosto era natural, não violenta, uma placidez salpicada de alegria. Respirei, e não tive animo de olhar para Virgilia; senti por cima da pagina o olhar della, que me pedia tambem a mesma cousa, e disse que sim, que iria. Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretario, era resolver as cousas de um modo administrativo.

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      A reconciliação

      E comtudo, ao sair de lá, tive umas sombras de duvida; cogitei se não ia expor insanamente a reputação de Virgilia, se não haveria outro meio razoavel de combinar o Estado e a Gamboa. Não achei nada. No dia seguinte, ao levantar-mo da cama, trazia o espirito feito e resoluto a aceitar a nomeação. Ao meio dia, veiu o creado dizer-me que estava na sala uma senhora, coberta com um véo. Corro; era minha irmã Sabina.

      — Isto não pode continuar assim, disse ella; é preciso que, de uma vez por todas, façamos as pazes. Nossa familia está acabando; não havemos de ficar como dous inimigos.

      — Mas se eu não te peço outra cousa, mana! bradei eu estendendo-lhe os braços.

      E sentei-a ao pé de mim, e falei-lhe do marido, da filha, dos negocios, de tudo. Tudo ia bem; a filha estava linda como os amores. O marido viria mostrar-m’a, se eu consentissse.

      — Ora essa! irei eu mesmo vel-a.

      — Sim?

      — Palavra.

      — Tanto melhor! respirou Sabina. É tempo de acabar com isto.

      Achei-a mais gorda, e talvez mais moça. Parecia ter vinte annos, e contava mais de trinta. Graciosa, affavel, nenhum acanhamento, nenhum resentimento. Olhavamos um para o outro, com as mãos seguras, falando de tudo e de nada, como dous namorados. Era a minha infancia que resurgia, fresca, travessa e loura; os annos iam caindo, como as fileiras de cartas de jogar encurvadas, com que eu brincava em pequeno, e deixavam-me ver a nossa casa, a nossa familia, as nossas festas. Supportei a recordação com algum esforço; mas um barbeiro da visinhança lembrou-se de zangarrear na classica rabeca, e essa voz, — porque até então a recordação era muda, — essa voz do passado, fanhosa e saudosa, a tal ponto me commoveu, que...

      Os olhos della estavam seccos. Sabina não herdára a flor amarella e morbida. Que importa? Era minha irmã, meu sangue, um pedaço de minha mãe, e eu disse-lh’o com ternura, com sinceridade... Subito, ouço bater á porta da sala; vou abrir; era um anjinho de cinco annos.

      — Entra, Sára, disse Sabina.

      Era minha sobrinha. Apanhei-a do chão, beijei-a muitas vezes; a pequena, espantada, empurrava-me o hombro com a mãosinha, quebrando o corpo para descer... Nisto, apparece-me á porta um chapéu, e logo um homem, o Cotrim, nada menos que o Cotrim. Eu estava tão commovido, que deixei a filha e lancei-me aos braços do pae. Talvez essa effusão o desconcertou um pouco; é certo que me pareceu acanhado. Simples prologo. Dahi a pouco falavamos como bons amigos velhos. Nenhuma allusão ao passado, muitos planos de futuro, promessa de jantarmos em casa um do outro; e não deixei de dizer que essa troca de jantares podia ser que tivesse uma curta interrupção, por que eu andava com idéas de uma viagem ao norte. Sabina olhou para o Cotrim, o Cotrim para Sabina; ambos concordaram que essas idéas não tinham senso commum. Que diacho podia eu achar no norte? Pois não era na côrte, em plena côrte, que devia continuar a luzir, a metter n’um chinello os rapazes do tempo? Que, na verdade, nenhum havia que se me comparasse; elle, Cotrim, acompanhava-me de longe, e, não obstante uma briga ridicula, teve sempre interesse, orgulho, vaidade nos meus triumphos. Ouvia o que se dizia a meu respeito, nas ruas e nas salas; era um concerto de louvores e admirações. E deixa-se isso para ir passar alguns mezes na provincia, sem necessidade, sem motivo serio? A menos que não fosse politica...

      — Justamente política, disse eu.

      — Nem assim, replicou elle dahi a um instante — E depois de outro silencio: — Seja como for, venha jantar hoje comnosco.

      — Certamente que vou; mas, amanhã ou depois, hão de vir jantar commigo.

      — Não sei, não sei, objectou Sabina; casa de homem solteiro... Você precisa casar, mano. Tambem eu quero uma sobrinha, ouviu?

      O Cotrim reprimiu-a com um gesto, que não entendi bem. Não importa; a reconciliação de uma familia vale bem um gesto enigmatico.

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      Questão de botânica

      Digam o que quizerem dizer os hypocondriacos: a vida é uma cousa


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