Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial). Machado de Assis

Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial) - Machado de Assis


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na frente. Parecia-lhe que o casarão em que morava podia ser substituido, e já tinha encommendado o risco a um pedreiro de fama. Ah! então sim, então é que Virgilia chegaria a ver o que era um velho de gosto.

      Falava, como se póde suppôr, lentamente e a custo, intervallado de uma arfagem incommoda para elle e para os outros. De quando em quando, vinha um accesso de tosse; curvo, gemendo, levava o lenço á boca, e investigava-o; passado o accesso, tornava ao plano da casa, que devia ter taes e taes quartos, um terraço, cocheira, um primor.

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      In extremis

      — Amanhã vou passar o dia em casa do Viegas, disse-me ella uma vez. Coitado! não tem ninguem...

      O Viegas caíra na cama, definitivamente; a filha, casada, adoecera justamente agora, e não podia fazer-lhe companhia. Virgilia ia lá de quando em quando. Eu aproveitei a circumstancia para passar todo aquelle dia ao pé della. Eram duas horas da tarde quando cheguei. O Viegas tossia com tal força que me fazia arder o peito; no intervallo dos accessos debatia o preço de uma casa, com um sujeito magro. O sujeito offerecia trinta contos, o Viegas exigia quarenta. O comprador instava como quem receia perder o trem da estrada de ferro, mas o Viegas não cedia; recusou primeiramente os trinta contos, depois mais dous, depois mais tres, emfim teve um forte accesso, que lhe tolheu a fala durante quinze minutos. O comprador acarinhou-o muito, arranjou-lhe os travesseiros, offereceu-lhe trinta e seis contos.

      — Nunca! gemeu o enfermo.

      E mandou buscar um maço de papeis á escrivaninha; não tendo forças para tirar a fita de borracha que prendia os papeis, pediu-me que os deslaçasse: fil-o. Eram as contas das despezas com a construcção da casa: contas de pedreiro, de carpinteiro, de pintor; contas do papel da sala de visitas, da sala de jantar, das alcovas, dos gabinetes; contas das ferragens; custo do terreno. Elle abria-as, uma por uma, com a mão tremula, e pedia-me que as lesse, e eu lia-as.

      — Veja; mil e duzentos, papel de mil e duzentos a peça. Dobradiças francezas... Veja, é de graça, concluiu elle depois de lida a ultima conta.

      — Pois bem... mas...

      — Quarenta contos; não lhe dou por menos. Só os juros... faça a conta dos juros...

      Vinham tossidas estas palavras, ás golfadas, ás syllabas, como se fossem migalhas de um pulmão desfeito. Nas orbitas fundas rolavam os olhos lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da madrugada. Sob o lençol desenhava-se a estructura ossea do corpo, pontudo em dous lugares, nos joelhos e nos pés; a pelle amarellada, bamba, rugosa, revestia apenas a caveira de um rosto sem expressão; uma carapuça de algodão branco cobria-lhe o craneo rapado pelo tempo.

      — Então? disse o sujeito magro.

      Fiz-lhe signal para que não insistisse, e elle calou-se por alguns instantes. O doente ficou a olhar para o tecto, calado, a arfar muito; Virgilia empallideceu, levantou-se, foi até á janella. Suspeitara a morte e tinha medo. Eu procurei falar de outras cousas. O sujeito magro contou uma anecdota, e tornou a tratar da casa, alteando a proposta.

      — Trinta e oito contos, disse elle.

      — Am?... gemeu o enfermo.

      O sujeito magro aproximou-se da cama, pegou-lhe na mão, e sentiu-a fria. Eu acheguei-me ao doente, perguntei-lhe se sentia alguma cousa, se queria tomar um calice de vinho.

      — Não... não... quar... quaren... quar... quar...

      Teve um accesso de tosse, e foi o ultimo; dahi a pouco expirava elle, com grande consternação do sujeito magro, que me confessou depois a disposição em que estava de offerecer os quarenta contos; mas era tarde.

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      O velho colóquio de Adão e Caim

      E nada. Nenhuma lembrança testamentaria, uma pastilha que fosse, com que do todo em todo não parecesse ingrato ou esquecido. Nada. Virgilia tragou raivosa esse mallogro, e disse-m’o com certa cautela, não pela cousa em si, senão porque entendia com o filho, de quem sabia que eu não gostava muito, nem pouco. Insinuei-lhe que não devia pensar mais em semelhante negocio. O melhor de tudo era esquecer o defunto, um lorpa, um cainho sem nome, e tratar de cousas alegres; o nosso filho, por exemplo.

      Lá me escapou a decifração do mysterio, esse doce mysterio de algumas semanas antes, quando Virgilia me pareceu um pouco differente do que era. Um filho! Um ser tirado do meu ser! Esta era a minha preoccupação exclusiva daquelle tempo. Olhos do mundo, zelos do marido, morte do Viegas, nada me interessava por então, nem conflictos politicos, nem revoluções, nem terremotos, nem nada. En só pensava naquelle embryão anonymo, de obscura paternidade, e uma voz secreta me dizia: é teu filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras, com certa voluptuosidade indefinivel, e não sei que assomos de orgulho. Sentia-me homem.

      O melhor é que conversavamos os dous, o embryão e eu, falavamos de cousas presentes e futuras. O maroto amava-me, era um pelintra gracioso, dava-me pancadinhas na cara com as mãosinhas gordas, ou então traçava a beca de bacharel, porque elle havia de ser bacharel, e fazia um discurso na camara dos deputados. E o pae a ouvil-o de uma tribuna, com os olhos rasos de lagrimas. De bacharel passava outra vez á escola, pequenino, lousa e livros debaixo do braço, ou então caía no berço para tornar a erguer-se homem. Em vão buscava fixar no espirito uma edade, uma attitude; esse embryão tinha a meus olhos todos os tamanhos e gestos: elle mamava, elle escrevia, elle valsava, elle era o interminavel nos limites de um quarto de hora, — baby e deputado, collegial e pintalegrete. Ás vezes, ao pé de Virgilia, esquecia-me della e de tudo; Virgilia sacudia-me, reprochava-me o silencio, dizia que eu já lhe não queria nada. A verdade é que estava em dialogo com o embryão; era o velho colloquio de Adão e Caim, uma conversa sem palavras entre a vida e a vida, o mysterio e o mysterio.

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      Uma carta extraordinária

      Por esse tempo recebi uma carta extraordinaria, acompanhada de um objecto não menos extraordinario. Eis o que a carta dizia:

      ⁠

      «Meu caro Braz Cubas.

      «Ha tempos, no Passeio Publico, tomei-lhe de emprestimo um relogio. Tenho a satisfação de restituir-lh’o com esta carta. A differença é que não é o mesmo, porém outro, não digo superior, mas egual ao primeiro. Que voulez-vous, monseigneur, — como dizia Figaro, — c’est la misère. Muitas cousas se deram depois do nosso encontro; irei contal-as pelo miudo, se me não fechar a porta. Saiba que já não trago aquellas botas caducas, nem envergo uma famosa sobrecasaca cujas abas se perdiam na noite dos tempos. Cedi o meu degrau da escada de S. Francisco; finalmente, almóço.

      Dito isto, peço licença para ir um dia destes expor-lhe um trabalho, fructo de longo estudo, um novo systema de philosophia, que não só explica e descreve a origem e a consummação das cousas, como faz dar um grande passo adeante de Zenon e Seneca, cujo stoicismo era um verdadeiro brinco de crianças ao pé da minha receita moral. É singularmente espantoso este meu systema; rectifica o espirito humano, supprime a dor, assegura a felicidade, e enche de immensa gloria o nosso paiz. Chamo-lhe humanitismo, de Humanitas, principio das cousas. Minha primeira idéa revelava uma grande enfatuação; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação vaidosa, além de rude e molesta. E com certeza exprimia menos. Verá, meu caro Braz Cubas, verá que é devéras um monumento; e se alguma cousa ha que possa fazer-me esquecer as amarguras da vida, é o gosto de haver emfim apanhado a verdade e a felicidade. Eil-as na minha mão essas duas esquivas; após tantos seculos de lutas, pesquizas, descobertas, systemas e quédas, eil-as nas mãos do homem. Até breve, meu caro Braz Cubas. Saudades do

      Velho amigo

      Joaquim Borba dos Santos.»

      Li esta carta sem entendel-a. Vinha com ella uma boceta


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