Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial). Machado de Assis
as noites, deante de uma imagem da Virgem, que tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo.
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O senão do livro
Começo a arrepender-me deste livro. Não que elle me cance; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capitulos para esse mundo sempre é tarefa que distráe um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulchro, traz certa contracção cadaverica; vicio grave, e aliás infimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estylo regular e fluente, e este livro e o meu estylo são como os ebrios, guinam á direita e á esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o ceu, escorregam e cáem...
E cáem! — Folhas miserrimas do meu cypreste, heis de cair, como quaesquer outras bellas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-hia uma lagrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que se não deixa boca para rir, tambem não deixa olhos para chorar... Heis de cair. Turvo é o ar que respiraes, amadas folhas. O sol que vos allumia, com ser de toda a gente, é um sol opaco e reles, de cemiterio e carnaval.
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O bibliômano
Talvez supprima o capitulo anterior; entre outros motivos, ha ahi, nas ultimas linhas, uma phrase muito parecida com desproposito, e eu não quero dar pasto á critica do futuro.
Olhae: daqui a setenta annos, um sugeito magro, amarello, grisalho, que não ama nenhuma outra cousa além dos livros, inclina-se sobre a pagina anterior, a ver se lhe descobre o desproposito; lê, relê, treslê, desengonça as palavras, sacca uma syllaba, depois outra, mais outra, e as restantes, examina-as por dentro e por fóra, por todos os lados, contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada. Fica sempre o mesmo desproposito.
É um bibliomano. Não conhece o autor; este nome de Braz Cubas não vem nos seus diccionarios biographicos. Achou o volume, por acaso, no pardieiro de um alfarrabista. Comprou-o por duzentos réis. Indagou, pesquizou, esgaravatou, e veiu a descobrir que era um exemplar, unico... Unico! Vós, que não só amaes os livros, senão que padeceis a mania delles, vós sabeis mui bem o valor desta palavra, e adivinhaes, portanto, as delicias de meu bibliomano. Elle regeitaria a corôa das Indias, o papado, todos os muzeus da Italia e da Hollanda, se os houvesse de trocar por esse unico exemplar; e não porque seja o das minhas Memorias; faria a mesma cousa com o Almanak de Laemmert, uma vez que fosse unico.
O peor é o desproposito. Lá continúa o homem inclinado sobre a pagina, com uma lente no olho direito, todo entregue á nobre e aspera funcção de decifrar o desproposito. Já prometteu a si mesmo escrever uma breve memoria, na qual relate o achado do livro e a descoberta da sublimidade, se a houver por baixo daquella phrase obscura. Ao cabo, não descobre nada e contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se á janella e mostra-o ao sol. Um exemplar unico! Nesse momento passa-lhe por baixo da janella um Cesar ou um Cromwell, a caminho do poder. Elle dá de hombros, fecha a janella, estira-se na rede e folhea o livro devagar, com amor, aos goles... Um exemplar unico!
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O "luncheon"
O desproposito fez-me perder outro capitulo. Que melhor não era dizer as cousas lisamente, sem todos estes solavancos! Já comparei o meu estylo ao andar dos ebrios. Se a idéa vos parece indecorosa, direi que elle é o que eram as minhas refeições com Virgilia, na casinha da Gamboa, onde ás vezes faziamos a nossa patuscada, o nosso lunch. Vinho, fructas, compotas. Comiamos, é verdade, mas era um comer virgulado de palavrinhas doces, de olhares ternos, de criancices, uma infinidade desses apartes do coração, aliás o verdadeiro, o ininterrupto discurso do amor. Ás vezes vinha o arrufo temperar o nimio adocicado da situação. Ella deixava-me, refugiava-se n’um canto do canapé, ou ia para o interior ouvir as denguices de D. Placida. Cinco ou dez minutos depois, reatavamos a palestra, como eu reato a narração, para desatal-a outra vez. Note-se que, longe de termos horror ao methodo, era nosso costume convidal-o, na pessoa de D. Placida, a sentar-se comnosco á meza; mas D. Placida não aceitava nunca.
— Você parece que não gosta mais de mim, disse-lhe um dia Virgilia.
— Virgem Nossa Senhora! exclamou a boa dama alçando as mãos para o tecto. Não gosto de Yayá! Mas então de quem é que eu gostaria neste mundo?
E, pegando-lhe nas mãos, olhou-a fixamente, fixamente, fixamente, até molharem-se-lhe os olhos, de tão fixo que era. Virgilia acariciou-a muito; eu deixei-lhe uma pratinha na algibeira do vestido.
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História de D. Plácida
Não te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confidencia de D. Placida, e conseguintemente este capitulo. Dias depois, como eu a achasse só em casa, travámos palestra, e ella contou-me em breves termos a sua historia. Era filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fóra. Perdeu o pae aos dez annos. Já então ralava côco e fazia não sei que outros misteres de doceira, compativeis com a edade. Aos quinze ou dezeseis casou com um alfaiate, que morreu tisico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha. Viuva, com pouco mais de vinte annos, ficaram a seu cargo a filha, com dous, e a mãe, cançada de trabalhar. Tinha de sustentar a tres pessoas. Fazia doces, que era o seu officio, mas cosia tambem, de dia e de noite, com affinco, para tres ou quatro lojas, e ensinava algumas crianças do bairro, a dez tostões por mez. Com isto iam-se passando os annos, não a belleza, porque não a tivera nunca. Appareceram-lhe alguns namoros, propostas, seducções, a que resistia.
— Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ella, creia que me teria casado; mas ninguem queria casar commigo.
Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; não sendo, porém, mais delicado que os outros, D. Placida despediu-o do mesmo modo, e depois de o despedir chorou muito. Continuou a coser para fóra e a escumar os tachos. A mãe tinha a rabugem do temperamento, dos annos e da necessidade; mortificava a filha para que tomasse um dos maridos de emprestimo e de occasião, que lh’a pediam. E bradava:
— Queres ser melhor do eu? Não sei donde te vem essas fiducias de pessoa rica. Minha camarada, a vida não se arranja á toa; não se come vento. Ora esta! Moços tão bons como o Polycarpo da venda, coitado...Esperas algum fidalgo, não é?
D. Placida jurou-me que não esperava fidalgo nenhum. Era genio. Queria ser casada. Sabia muito bem que a mãe o não fôra, e conhecia algumas que tinham só o seu moço dellas; mas era genio e queria ser casada. Não queria tambem que a filha fosse outra cousa. E trabalhava muito, queimando os dedos ao fogão, e os olhos ao candieiro, para comer e não cair. Emmagreceu, adoeceu, perdeu a mãe, enterrou-a por subscripção, e continuou a trabalhar. A filha estava com quatorze annos; mas era muito fraquinha, e não fazia nada, a não ser namorar os capadocios que lhe rondavam a rotula. D. Placida vivia com immensos cuidados, levando-a comsigo, quando tinha de ir entregar costuras; e a gente das lojas arregalava e piscava os olhos, convencida de que ella a levava para colher marido ou outra cousa. Alguns diziam graçolas, faziam comprimentos; a mãe chegou a receber propostas de dinheiro...
Interrompeu-se um instante, e continuou logo:
— Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber... Deixou-me só, mas tão triste, tão triste, que pensei morrer. Não tinha ninguem mais no mundo e estava quasi velha e doente. Foi por esse tempo que conheci a familia de Yayá; boa gente, que me deu que fazer, e até chegou a me dar casa. Estive lá muitos mezes, um anno, mais de um anno, aggregada, costurando. Saí quando Yayá casou. Depois vivi como Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas mãos... E mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas da agulha. — Não se cria isto á toa, meu senhor; Deus sabe como é que isto se cria... Felizmente,