Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial). Machado de Assis
relogio excluia toda a idéa de burla; a lucidez, a serenidade, a convicção, — um pouco jactanciosa, é certo, — pareciam excluir a suspeita de insensatez. Naturalmente o Quincas Borba herdara de algum dos seus parentes de Minas, e a abastança devolvera-lhe a primitiva dignidade. Não digo tanto; ha cousas que se não podem rehaver integralmente; mas emfim a regeneração não era impossivel. Guardei a carta e o relogio, e esperei a philosophia.
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Um homem extraordinário
Já agora acabo com as cousas extraordinarias. Vinha de guardar a carta e o relogio, quando me procurou um homem magro e meão, com um bilhete do Cotrim, convidando-me para jantar. O portador era casado com uma irmã do Cotrim, chegára poucos dias antes do norte, chamava-se Damasceno, e fizera a revolução de 1831. Foi elle mesmo que me disse isto, no espaço de cinco minutos. Saíra do Rio de Janeiro, por desaccordo com o Regente, que era um asno, pouco menos asno do que os ministros que serviram com elle. De resto, a revolução estava outra vez ás portas. Neste ponto, comquanto trouxesse as idéas politicas um pouco baralhadas, consegui organisar e formular o governo de suas preferencias: era um despotismo temperado, — não por cantigas, como dizem alhures, — mas por pennachos da guarda nacional. Só não pude alcançar se elle queria o despotismo de um, de tres, de trinta ou de tresentos. Opinava por varias cousas, entre outras, o desenvolvimento do trafico dos africanos e a expulsão dos inglezes. Gostava muito de theatro; logo que chegou foi ao theatro de S. Pedro, onde viu um drama soberbo, a Maria Joanna, e uma comedia muito interessante, Kettly, ou a volta á Suissa. Tambem gostara muito da Deperini, na Sapho, ou na Anna Bolena, não se lembrava bem. Mas a Candiani! sim, senhor, era papa-fina. Agora queria ouvir o Ernani, que a filha delle cantava em casa, ao piano: Ernani, Ernani, involami... — E dizia isto levantando-se e cantarolando a meia voz. — No norte essas cousas chegavam como um echo. A filha morria por ouvir todas as operas. Tinha uma voz muito mimosa a filha. E gosto, muito gosto. Ah! elle estava ancioso por voltar ao Rio de Janeiro. Já havia corrido a cidade toda, com umas saudades... Palavra! em alguns logares teve vontade de chorar. Mas não embarcaria mais. Enjoára muito a bordo, como todos os outros passageiros, excepto um inglez... Que os levasse o diabo os inglezes! Isto não ficava direito sem irem todos elles barra fóra. Que é que a Inglaterra podia fazer-nos? Se elle encontrasse algumas pessoas de boa vontade, era obra de uma noite a expulsão dos taes godemes... Graças a Deus, tinha patriotismo, — e batia no peito, — o que não admirava porque era de familia; descendia de um antigo capitão-mór muito patriota. Sim, não era nenhum pé-rapado. Viesse a occasião, e elle havia de mostrar de que pau era a canoa... Mas fazia-se tarde, ia dizer que eu não faltaria ao jantar, e lá me esperava para maior palestra. — Levei-o até á porta da sala; elle parou dizendo que sympathisava muito commigo. Quando casára, estava eu na Europa. Conheceu meu pae, um homem ás direitas, com quem dansára n’um celebre baile da Praia Grande... Coisas! coisas! Falaria depois, fazia-se tarde, tinha de ir levar a resposta ao Cotrim. Saiu; fechei-lhe a porta... Uf!
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O jantar
Que supplicio que foi o jantar! Felizmente, Sabina fez-me sentar ao pé da filha do Damasceno, uma D. Eulalia, ou mais familiarmente Nhã-lóló, moça bem graciosa, um tanto acanhada a principio, mas só a principio. Faltava-lhe elegancia, mas compensava-a com os olhos, que eram soberbos e só tinham o defeito de se não arrancarem de mim, excepto quando desciam ao prato; mas Nhã-lóló comia tão pouco, que quasi não olhava para o prato. De noite cantou; a voz era como dizia o pae, «muito mimosa». Não obstante, esquivei-me. Sabina veiu até á porta, e perguntou-me que tal achára a filha do Damasceno.
— Assim, assim.
— Muito sympathica, não é? acudiu ella; falta-lhe um pouco mais de corte. Mas que coração! é uma perola. Bem boa noiva para você.
— Não gosto de perolas.
— Casmurro! Para quando é que você se guarda? para quando estiver a cair de maduro, já sei. Pois, meu rico, quer você queira quer não, ha de casar com Nhã-lóló.
E dizia isto a bater-me na face com os dedos, meiga como uma pomba, e ao mesmo tempo intimativa e resoluta. Santo Deus! seria esse o motivo da reconciliação? Fiquei um pouco desconsolado com a idéa, mas uma voz mysteriosa chamava-me á casa do Lobo Neves, disse adeus a Sabina e ás suas ameaças.
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A causa secreta
— Como está a minha querida mamãe?
A esta palavra, Virgilia amuou-se, como sempre. Estava ao canto de uma janella, sosinha, a olhar para a lua, e recebeu-me alegremente; mas quando lhe falei no nosso filho amuou-se. Não gostava de semelhante allusão, aborreciam-lhe as minhas anticipadas caricias paternaes. E eu, para quem ella era já uma pessoa sagrada, uma ambula divina, deixava-a estar quieta. Suppuz a principio que o embryão, esse perfil do incognito, projectando-se na nossa aventura, lhe restituira a consciencia do mal. E enganava-me. Nunca Virgilia me parecera mais expansiva, mais sem reservas, menos preoccupada dos outros e do marido. Não eram remorsos. Imaginei tambem que a concepção seria um puro invento, um modo de prender-me a ella, recurso sem longa efficacia, que talvez começava de opprimil-a. Não era absurda esta hypothese; a minha doce Virgilia mentia ás vezes, com tanta graça!
Naquella noite descobri a causa verdadeira. Era medo do parto e vexame da gravidez. Padecera muito quando lhe nasceu o primeiro filho; e essa hora, feita de minutos de vida e minutos de morte, dava-lhe já imaginariamente os calefrios do patibulo. Quanto ao vexame, complicava-se ainda da forçada privação de certos habitos da vida elegante. Com certeza, era isso mesmo; dei-lh’o a entender, reprehendendo-a, um pouco em nome dos meus direitos de pae. Virgilia fitou-me; em seguida desviou os olhos e sorriu de um geito incredulo.
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Flores de antanho
Onde estão ellas as flores de antanho? Uma tarde, apoz algumas semanas de gestação, esboroou-se todo o edificio das minhas chimeras paternaes. Foi-se o embryão, naquelle ponto em que se não distingue Laplace de uma tartaruga. Tive a noticia por boca do Lobo Neves, que me deixou na sala, e acompanhou o medico á alcova da frustrada mãe. Eu encostei-me á janella, a olhar para a chacara, onde verdejavam as laranjeiras sem flores. Onde iam ellas as flores de antanho?
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A carta anônima
Senti tocar-me no hombro; era o Lobo Neves. Encaramo-nos alguns instantes, mudos, inconsolaveis. Indaguei de Virgilia, depois ficamos a conversar uma meia hora. No fim desse tempo, vieram trazer-lhe uma carta; elle leu-a, empallideceu muito, e fechou-a com a mão tremula. Creio que lhe vi fazer um gesto, como se quizesse atirar-se sobre mim; mas não me lembra bem. O que me lembra claramente é que durante os dias seguintes recebeu-me frio e taciturno. Emfim, Virgilia contou-me tudo, dahi a dias na Gamboa.
O marido mostrou-lhe a carta, logo que ella se restabeleceu. Era anonyma e denunciava-nos. Não dizia tudo; não falava, por exemplo, das nossas entrevistas externas; limitava-se a precavel-o contra a minha intimidade, e accrescentava que a suspeita era publica. Virgilia leu a carta e disse com indignação que era uma calumnia infame.
— Calumnia? perguntou o Lobo Neves.
— Infame.
O marido respirou; mas, tornando á carta, parece que cada palavra della lhe fazia com o dedo um signal negativo, cada lettra bradava contra a indignação da mulher. Esse homem, aliás intrepido, era agora a mais fragil das creaturas. Talvez a imaginação lhe mostrou, ao longe, o famoso olho da opinião, a fital-o sarcasticamente, com um ar de pulha; talvez uma boca invisivel lhe repetiu ao ouvido as chufas que elle escutara ou dissera outr’ora. Instou com a