Sobre(viventes). Susana Gaião Mota

Sobre(viventes) - Susana Gaião Mota


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das melhores coisas que nos pode

      acontecer na vida é ter uma infância feliz.”

      Agatha Christie

      Casos de Vida

      1

      — É feliz?

      — Se ser feliz é um ato de coragem, talvez!

      Mimi, 37 anos, Lisboa

      Chegou sem querer chamar a atenção, mas do alto do seu metro e setenta era difícil não reparar na sua exuberância inata.

      Esguia, de ar confiante, com traços exóticos, voz e olhar doces, assim é Hamida, conhecida desde sempre por Mimi.

      Tem origem indiana por parte do pai e isso está-lhe estampado no rosto, na pele e nos olhos. Cabelo longo, escuro de nascença, mas pintado de louro por agora, porque gosta de mudar de vez em quando. Talvez da próxima vez que a encontremos já não tenha o mesmo visual, porque gosta de variar, mas apenas na aparência.

      Tem uma história difícil de contar, nem tanto por si, mas pela crueza dos factos que podem dar uma má impressão daqueles que ama e que a rodeiam.

      Escolhe bem as palavras, tenta não se emocionar, quer sentir-se uma fortaleza para os três filhos que tem para criar. Já cuidou de uma criança em tempos: o sobrinho. Perdeu-lhe o rasto, e tampouco sabe o nome que lhe atribuíram posteriormente, mas assegura, conformada, que “foi melhor para ele!”.

      Se pudesse tinha dado outro destino àquela criança, mas ela própria era então uma criança, na altura em que foi retirada à família e colocada “à experiência” no Centro de Acolhimento Temporário descrito neste livro.

      Era o mês de Dezembro do ano de 1998. Mimi tinha 15 anos e a única preocupação da assistente da Segurança Social responsável pelo processo era não a querer na rua.

      A diretora do Centro foi desde logo avisada: “É natural que tente fugir”.

      E tentou, e conseguiu, mas voltou, e só saiu da casa de acolhimento para uma casa própria aos 21 anos, ou seja, seis anos depois.

      A primeira coisa que Mimi disse nesta entrevista, mal se sentou, foi: “Eu em pequenina fui muito feliz!”

      Baixando os olhos continuou naquela incursão pelo seu passado longínquo que tenta manter impoluto na memória – “Entretanto foram as opções da minha mãe que fizeram com que as coisas corressem mal”.

      O orgulho na progenitora e na educação que recebeu dela na infância é referida com um sorriso nos lábios porque a mãe “pode não saber ler nem escrever, mas é uma mulher muito culta”.

      Mimi relembrou os fins-de-semana em que a mãe passeava com ela e com os irmãos por Lisboa e lhes explicava as origens dos locais por onde passavam. Hoje em dia, Mimi faz o mesmo com os filhos, porque lhes quer passar essa espécie de legado: “Afinal nem tudo é mau, é isso que a pessoa tem de ver: do mau tirar a parte boa”.

      Mimi tem cinco irmãos, quatro rapazes e uma rapariga. Um deles nunca chegou a conhecer. Outro vivia, durante a sua infância, numa casa de acolhimento.

      A morar na mesma casa eram ela, dois irmãos e uma irmã mais velhos. A sua maior ligação sempre foi com o primogénito, com quem conviveu até ir para a casa de acolhimento: “Foi o que sempre lutou por nós!”

      O pai, conheceu-o há pouco tempo. E se em nada a marcou na educação e nos ensinamentos, está-lhe no ADN e nas características físicas. “É indiano, muito engraçado, já está velhote”.

      A complacência inicial é seguida pela desilusão dos factos: “Não foi uma receção muito calorosa e eu resisti a receber o amor dele, mas eu sou assim porque não me dou a conhecer com facilidade. Foram muitos anos sozinha com a minha mãe, a lutar por uma vida, e de repente ele aparece, como se não se tivesse passado nada”.

      Mimi não gosta de se demorar muito neste assunto: “Gostei de o conhecer e pronto. Ele vive perto de Lisboa, até me liga de vez em quando, mas nada mais do que isso”.

      E se tratar uma filha assim para ele é normal Mimi aceita, mas não compreende: - “Não me cabe a mim perceber porquê, até porque tenho de me preocupar com os meus próprios filhos”.

      Era o padrasto que ela via como um pai, até este morrer.

      Mas no campo dos afetos mais precoces uma outra pessoa era o centro do seu mundo. Uma criança — mais concretamente o seu sobrinho — de quem cuidou incondicionalmente até ele ser adotado.

      Foi o mais difícil de ultrapassar, saber que teria de se separar daquela criança de quatro anos que ela adorava e tratava como filho: “Mas era o melhor, ele tinha o direito de ter um lar estruturado”. Esta justificação aceita-a agora com a maturidade dos adultos, mas naquele momento o coração não pôde compreender.

      Agora, David, o sobrinho que já é maior de idade e já tem outro nome, é com certeza um adulto feliz, cresceu com uma família e é isso que interessa. Mas importa também saber que ele se lembra de certeza da tia Mimi. E a tia Mimi acalenta a esperança de que um dia a sua família atual lhe fale dela e lhe conte o quanto o amou e protegeu quando ambos eram ainda crianças.

      Crianças de idades diferentes, mas unidas por laços de sangue e por um acontecimento que mudou as suas vidas para sempre.

      Remontando aos factos que Mimi, naturalmente, não gosta de recordar: naquele outono de 1998 a tragédia bateu à porta da sua família. O futuro trágico já se adivinhava, mas ninguém, a não ser os adultos, tinham a capacidade de deter o rumo dos acontecimentos.

      No apartamento onde viviam Mimi, a mãe, o padrasto, dois irmãos, a irmã e o sobrinho, uma morte acabou por expor o que acontecia no quotidiano daquela casa.

      Uma noite, tragicamente, o padrasto caiu da janela.

      Na sequência dessa morte houve buscas ao apartamento e a mãe acabou por ser presa, e posteriormente condenada a cinco anos de prisão por tráfico de estupefacientes. O irmão mais velho também foi condenado pelas mesmas razões.

      Mimi tinha uma forte ligação ao padrasto e ficou profundamente marcada com a sua morte. Até porque presenciou tudo.

      Nas buscas à casa, a polícia apreendeu armas e drogas.

      Depois dos trágicos acontecimentos Mimi conseguiu ficar inexplicavelmente mais de 45 dias em casa com o sobrinho. Eram duas crianças a viver sozinhas. Não saíam da habitação e ir à escola tornou-se inviável.

      Sem água nem luz, eram os amigos de Mimi que lhe valiam. Dormiam à vez lá em casa com ela e com o sobrinho ou apareciam pela manhã com pão fresco e leite para que não passassem fome.

      Mas havia também os inimigos, os consumidores e traficantes que sabiam o que se fazia ali. O problema maior foi quando Mimi se tornou uma delatora junto da polícia e passou a correr risco de vida: foi vítima de ameaças e até de ofensas físicas.

      Era impossível manter-se ali com o sobrinho, por isso, embora tenha resistido com todas as suas forças no dia em que os foram buscar, acabou por aceitar o inevitável: precisava de acreditar com esperança num recomeço e ver como corria. Nunca pensou, no entanto, separar-se de David.

      Mimi passou de dona de casa e mãe a uma simples adolescente acolhida num lar. Com todas as regras e dificuldades que isso acarretava para quem já estava habituada a ser dona da própria vida.

      Chegou assustada, cansada de problemas e injustiças, e os primeiros dias foram muito complicados — Mimi sentia falta das suas coisas, de poder estar à vontade e da sua família.

      Foi num impulso que pulou o muro ao fim de uma semana. O seu único plano era fugir para bem longe dali.

      Mas no seu campo afetivo apareceu uma pessoa que se viria a revelar muito importante, e mesmo a mentora que até aí nunca tivera: a diretora, à época, daquela casa de acolhimento.

      Nessa altura, Mimi recorda


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