Os Lusíadas. Luis de Camoes

Os Lusíadas - Luis de Camoes


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troco da palaura mal comprida.

      E com ſeus filhos & molher ſe parte,

      A aleuantar co elles a fiança,

      Deſcalços, & deſpidos, de tal arte,

      Que mais moue a piedade que a vingança.

      Se pretendes Rei alto de vingarte,

      De minha temeraria confiança,

      Dizia, eis aqui venho offerecido,

      A te pagar co a vida o prometido.

      Ves aqui trago as vidas inocentes,

      Dos filhos ſem peccado, & da conſorte,

      Se a peitos generoſos, & excellentes,

      Dos fracos ſatisfaz a fera morte.

      Ves aqui as mãos, & a lingoa delinquentes,

      Nellas ſos exprimenta, toda ſorte

      De tormentos, de mortes, pelo eſtillo

      De Scinis, & do touro de Perillo.

      Qual diante do algoz o condenado,

      Que ja na vido a morte tem bebido,

      Poem no çepo a garganta: & ja entregado,

      Eſpera pelo golpe tam temido:

      Tal diante do Principe indinado,

      Egas eſtaua a tudo offerecido:

      Mas o Rei vendo a eſtranha lealdade,

      Mais pode em fim que a Ira a Piedade.

      O grão fidelidade Portugueſa,

      De vaſſallo, que a tanto ſe obrigaua,

      Que mais o Perſa fez naquella empreſa,

      Onde roſto & narizes ſe cortaua,

      Do que ao grande Dario tanto peſa,

      Que mil vezes dizendo ſuspiraua.

      Que mais o ſeu Zopiro ſão prezâra,

      Que vinte Babilonias que tomàra

      Mas ja o Principe Affonſo aparelhaua,

      O Luſitano exercito ditoſo,

      Contra o Mouro que as terras habitaua,

      Dalem do claro Tejo deleitoſo:

      Ia no campo de Ourique ſe aſſentaua,

      O arraial ſoberbo, & belicoſo:

      Defronte do inimigo Sarraceno,

      Poſto que em força, & gente tam pequeno.

      Em nenhũa outra couſa confiado,

      Senão no ſummo Deos, que o Ceo regia,

      Que tam pouco era o pouo bautizado,

      Que pera hum ſo cem Mouros aueria.

      Iulga qualquer juyzo ſoſſegado,

      Por mais temeridade que ouſadia,

      Cometer hum tamanho ajuntamento,

      Que pera hum caualleiro ouueſſe cento.

      Cinco Reis Mouros ſam os inimigos,

      Dos quaes o principal Ismar ſe chama,

      Todos exprimentados nos perigos

      Da guerra, onde ſe alcança a illuſtre fama:

      Seguem guerreiras Damas ſeus amigos,

      Imitando a fermoſa & forte Dama,

      De quem tanto os Troyanos ſe ajudârão,

      E as que o Termodonte ja goſtârão.

      A matutina luz ſerena, & fria,

      As Estrellas do Pollo ja apartaua,

      Quando na Cruz o Filho de Maria,

      Amoſtrando ſe a Affonſo o animaua:

      Elle adorando quem lhe aparecia,

      Na Fê todo inflamado aſsi gritaua.

      Aos infieis Senhor, aos infieis,

      E não a my que creio o que podeis.

      Com tal milagre, os animos da gente

      Portugueſa, inflamados leuantauão,

      Por ſeu Rei natural, eſte excelente

      Principe, que do peito tanto amauão:

      E diante do exercito potente,

      Dos imigos, gritando o ceo tocauão:

      Dizendo em alta voz, real, real,

      Por Affonſo alto Rei de Portugal.

      Qoal cos gritos & vozes incitado,

      Pola montanha o rabido Moloſo,

      Contra o Touro remete, que fiado

      Na força eſtà do corno temeroſo:

      Ora pega na orelha, ora no lado,

      Latindo mais ligeiro que forçoſo,

      Ate que em fim rompendolhe a garganta,

      Do brauo a força horrenda ſe quebranta.

      Tal do Rei nouo, o eſtamago acendido,

      Por Deos & polo pouo juntamente,

      O barbaro comete apercebido,

      Co animoſo exercito rompente:

      Leuantão nisto os perros o alarido

      Dos gritos, tocam a arma, ſerue a gente,

      As lanças & arcos tomão, tubas ſoão,

      Inſtromentos de guerra tudo atroão.

      Bem como quando a flama que ateada,

      Foi nos aridos campos (aſoprando

      O ſibilante Boreas) animada

      Co vento, o ſeco mato vay queimando:

      A paſtoral companha, que deitada,

      Co doçe ſono estaua, deſpertando,

      Ao eſtridor do fogo que ſe atea,

      Recolhe o fato, & ſoge pera a aldea.

      Deſta arte o Mouro atonito & toruado,

      Toma ſem tento as armas muy depreſſa,

      Não foge: mas eſpera confiado,

      E o ginete belligero arremeſſa:

      O Portugues o encontra denodado,

      Pelos peitos as lanças lhe atraueſſa.

      Hũs caem meios mortos, & outros vão

      A ajuda conuocando do Alcorão.

      Ali ſe vem encontros temeroſos,

      Pera ſe desfazer hũa alta ſerra,

      E os animais correndo furioſos,

      Que Neptuno amoſtrou ferindo a terra:

      Golpes ſe dão medonhos, & forçoſos,

      Por toda a parte andaua aceſa a guerra:

      Mas o de Luſo, arnes, couraça & malha,

      Rompe, corta, desfaz, a bola & talha.

      Cabeças pelo campo vão ſaltando,

      Braços, pernas, ſem dono & ſem ſentido,

      E doutros as entranhas palpitando,

      Palida a cor, o geſto amortecido:

      Ia perde o campo o exercito nefando,

      Correm rios do ſangue deſparzido

      Com que tambem do campo a cor ſe perde

      Tornado Carmeſi de branco & verde.

      Ia


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