A Ordem. Daniel Silva

A Ordem - Daniel Silva


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do luxuoso sedan alemão. Era uma forma imprópria de um Soldado de Cristo se deslocar. Calculava que essa fosse a última vez que atravessava Roma numa limusina com motorista. Durante quase duas décadas, desempenhara funções equiparáveis às de um chefe de gabinete da Igreja Católica Romana. Fora uma época conturbada (um ataque terrorista na Praça de São Pedro, um escândalo que envolvera antiguidades e os Museus do Vaticano, o flagelo dos abusos sexuais dos sacerdotes), mas, mesmo assim, Donati apreciara cada minuto. Agora, num abrir e fechar de olhos, tudo terminara. Era novamente um mero sacerdote. Nunca se tinha sentido tão só.

      O carro atravessou o Tibre e virou para a Via della Conciliazione, a larga avenida que Mussolini talhara entre os bairros degradados de Roma. A cúpula da Basílica, iluminada por holofotes e restaurada à sua glória original, espreitava ao longe. Seguiram a curva da Colunata de Bernini até à Porta de Santa Ana, onde um guarda suíço gesticulou para que continuassem para o território da cidade-estado. Envergava o uniforme noturno: uma farda azul com gola branca de estilo colegial, meias até ao joelho, uma boina preta, uma capa contra o frio da noite. Os seus olhos estavam secos, o rosto impassível.

      Ele não sabe…

      O carro subiu lentamente a Via Sant’Anna, passando pela caserna da Guarda Suíça, pela Igreja de Santa Ana, pela Tipografia Vaticana e pelo Banco do Vaticano, antes de se deter junto de uma arcada que conduzia ao Pátio de São Dâmaso. Donati atravessou a calçada a pé, entrou no mais importante elevador de toda a cristandade e subiu até ao terceiro andar do Palácio Apostólico. Apressou-se a percorrer a lógia, ladeada por uma parede de vidro, num lado, e por um fresco, no outro. Um desvio à esquerda levou-o até ao apartamento papal.

      De pé, à porta, havia outro guarda suíço, absolutamente hirto, desta feita trajado com o uniforme formal completo. Donati passou por ele sem uma palavra e entrou. Quinta-feira, pensou ele. Porque é que tinha de ser numa quinta-feira?

      * * *

      Dezoito anos, pensou Donati enquanto inspecionava o escritório privado do Santo Padre, e nada mudara. Apenas o telefone. Donati conseguira, finalmente, convencer o Santo Padre a substituir o antiquado aparelho de disco por um telefone moderno com várias linhas. À exceção disso, a divisão estava exatamente como o polaco a deixara. A mesma secretária de madeira austera. A mesma cadeira bege. O mesmo tapete oriental puído. O mesmo relógio e o mesmo crucifixo dourados. Até o conjunto de caneta e mata-borrão que pertencera a Wojtyla, o Grande. Embora, inicialmente, o seu papado tivesse sido muito promissor, criando a expectativa de uma Igreja mais bondosa e menos repressiva, Pietro Lucchesi nunca conseguira escapar completamente à vasta sombra do seu predecessor.

      Instintivamente, Donati reparou nas horas marcadas no seu relógio de pulso. Eram 00h07. Nessa noite, o Santo Padre retirara-se para o escritório às oito e meia, para noventa minutos de leitura e escrita. Habitualmente, Donati permanecia junto do seu mestre ou ao fundo do corredor, no seu escritório. Mas, como era quinta-feira, a única noite da semana que tinha para si, tinha ficado apenas até às nove horas.

      Faça-me um favor antes de ir, Luigi…

      Lucchesi pedira a Donati que abrisse as pesadas cortinas que tapavam a janela do escritório. Era a mesma janela a partir da qual, todos os domingos ao meio-dia, o Santo Padre rezava o Ângelus. Donati cumprira os desejos do seu mestre. Abrira, inclusive, as persianas, para que Sua Santidade pudesse contemplar a Praça de São Pedro, enquanto se dedicava arduamente às formalidades administrativas curiais. Agora, as cortinas estavam completamente corridas. Donati afastou-as para o lado. As persianas também estavam fechadas.

      A secretária estava arrumada, não a habitual desarrumação de Lucchesi. Havia uma chávena de chá semivazia e uma colher pousada no pires que não estavam ali quando Donati saíra. Vários documentos, guardados em pastas de arquivo, empilhavam-se ordenadamente sob o velho candeeiro extensível. Um relatório da Arquidiocese de Filadélfia sobre as consequências financeiras do escândalo dos abusos sexuais. Observações para a audiência geral da quarta-feira seguinte. O primeiro rascunho de uma homilia para uma futura visita papal ao Brasil. Notas para uma encíclica sobre o tema da imigração que, decerto, irritariam Saviano e os seus simpatizantes da extrema-direita italiana.

      No entanto, um artigo desaparecera.

      Vai assegurar-se de que ele recebe isto, não vai, Luigi?

      Donati inspecionou o cesto dos papéis. Estava vazio. Nem um único pedacinho de papel.

      — Vossa Excelência está à procura de alguma coisa?

      Donati ergueu o olhar e viu o cardeal Domenico Albanese a observá-lo da porta. Albanese era calabrês de nascimento e, de ofício, uma criatura da Cúria. Ocupava vários cargos superiores na Santa Sé, incluindo o de presidente do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso e o de arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana. No entanto, nada disso explicava a sua presença no apartamento papal sete minutos depois da meia-noite. Aliás, Domenico Albanese também era o camerlengo. Era da sua exclusiva responsabilidade fazer a declaração formal de que o trono de São Pedro se encontrava vago.

      — Onde é que ele está? — perguntou Donati.

      — No reino dos céus — entoou o cardeal.

      — E o corpo?

      Se Albanese não tivesse ouvido o chamamento sagrado, poderia ter ganhado a vida a carregar placas de mármore ou a arremessar carcaças num matadouro calabrês. Donati seguiu-o, através de um pequeno corredor, até ao quarto. Outros três cardeais aguardavam na penumbra: Marcel Gaubert, José Maria Navarro e Angelo Francona. Gaubert era o secretário de Estado, na prática, o primeiro-ministro e chefe da diplomacia do mais pequeno país do mundo. Navarro era o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, guardião da ortodoxia católica e defensor contra a heresia. Francona, o mais velho dos três, era o reitor do Colégio Cardinalício. Como tal, presidiria ao próximo conclave.

      Foi Navarro, um espanhol de linhagem nobre, quem se dirigiu a Donati primeiro. Embora vivesse e trabalhasse em Roma há quase um quarto de século, continuava a falar italiano com um forte sotaque castelhano.

      — Luigi, sei como isto deve ser doloroso para si. Nós éramos os seus fiéis servidores, mas era o Luigi que ele mais amava.

      Ao ouvir o chavão curial do espanhol, o cardeal Gaubert, um parisiense magro com um rosto felino, assentiu gravemente com a cabeça, tal como os três leigos que se encontravam na sombra, de pé, na extremidade da divisão: o doutor Octavio Gallo, médico pessoal do Santo Padre, Lorenzo Vitale, diretor do Corpo della Gendarmeria, e o coronel Alois Metzler, comandante da Guarda Suíça Pontifícia. Parecia que Donati fora o último a chegar. Devia ter sido ele, o secretário pessoal, a convocar os príncipes superiores da Igreja para a cabeceira do falecido papa, não o camerlengo. Subitamente, sentiu-se atormentado pela culpa.

      Porém, quando baixou o olhar para observar a figura estendida na cama, a culpa deu lugar a um pesar avassalador. Lucchesi ainda envergava a batina branca, embora lhe tivessem retirado os múleos e o solidéu tivesse desaparecido. Alguém lhe colocara as mãos sobre o peito, a agarrar o rosário. Os olhos estavam fechados, o maxilar flácido, mas não havia qualquer sinal de dor no seu rosto, nada que sugerisse que sofrera. Na verdade, Donati não teria ficado surpreendido se Sua Santidade tivesse acordado de repente e perguntado como correra a sua noite.

      Ainda envergava a batina branca…

      Donati fora o responsável pela agenda do Santo Padre desde o primeiro dia do seu pontificado. A rotina noturna raramente variava. O jantar era das sete às oito e meia. As formalidades administrativas no escritório, das oito e meia às dez, seguidas de quinze minutos de oração e reflexão na sua capela privada. Em regra, estava na cama às dez e meia, geralmente em companhia de um romance policial inglês, o seu prazer secreto. Crimes e Desejos, de P.D. James, repousava na mesa de cabeceira, debaixo dos seus óculos de leitura. Donati abriu-o na página marcada.

      Quarenta e cinco minutos depois, Rickards estava de volta ao local do crime…

      Donati fechou o livro. Calculava que o Sumo Pontífice estivesse morto há quase


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