A Ordem. Daniel Silva

A Ordem - Daniel Silva


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que era agente de campo reformada do Depar­tamento, conseguia aguentar o seu ritmo alucinante durante mais de dois ou três quilómetros. As crianças iriam, decididamente, desfalecer.

      O truque seria encontrar algo para Gabriel fazer enquanto estivessem de férias, um pequeno projeto que pudesse ocupá-lo durante algumas horas, todas as manhãs, até que as crianças acordassem e estivessem vestidas e prontas para começar o dia. E se esse projeto pudesse ser realizado numa cidade onde ele já se sentisse à vontade? A cidade onde estudara o ofício de restaurador de arte e fizera a sua formação prática? A cidade onde ele e Chiara se tinham conhecido e apaixonado? Ela era natural dessa cidade e o pai era o grande rabino da sua cada vez mais reduzida comunidade judaica. Para além disso, a sua mãe andava a insistir para que que levasse as crianças a visitá-los. Seria perfeito, pensou. Como diz o provérbio, mataria dois coelhos de uma cajadada só.

      Mas quando? Agosto estava fora de questão. Era demasiado quente e húmido e a cidade estaria submersa num mar de turistas, hordas de amantes de selfies que, durante uma hora ou duas, seguiam guias mal-humorados pela cidade, antes de engolirem apressadamente um cappuccino no Caffè Florian, por um preço exorbitante, e regressarem aos seus cruzeiros. Mas, se esperassem até, digamos, novembro, o tempo estaria fresco e sem nuvens e teriam o sestiere basicamente só para eles. Isso dar-lhes-ia a oportunidade de refletirem sobre o futuro sem a distração do Departamento ou da vida quotidiana em Israel. Gabriel informara o primeiro-ministro de que cumpriria apenas um mandato. Não era demasiado cedo para começarem a pensar como iriam passar o resto das suas vidas e onde iriam criar os seus filhos. Nenhum deles estava a ir para novo, principalmente Gabriel.

      Chiara não o informou dos seus planos, já que isso só conduziria a um extenso discurso por parte do seu marido sobre todos os motivos pelos quais o Estado de Israel colapsaria se ele tirasse, sequer, um dia de folga. Pelo contrário, conspirou com Uzi Navot, o subdiretor, para escolher as datas. A divisão de Logística, responsável pela aquisição e gestão de propriedades seguras, tratou do alojamento. A polícia e os serviços secretos locais, com quem Gabriel mantinha uma relação de grande proximidade, aceitaram encarregar-se da segurança.

      Faltava apenas o projeto para manter Gabriel ocupado. No final de outubro, Chiara telefonou a Francesco Tiepolo, proprietário de uma das mais proeminentes empresas de restauro da região.

      — Tenho mesmo aquilo de que precisa. Vou enviar-lhe uma fotografia.

      Três semanas depois, após uma reunião particularmente conflituosa do turbulento Conselho de Israel, Gabriel regressou a casa para encontrar a família Allon de malas feitas.

      — Vais deixar-me?

      — Não — disse Chiara. — Vamos de férias. Nós todos.

      — Eu não posso, de forma nenhuma…

      — Está tudo tratado, querido.

      — O Uzi sabe?

      Chiara assentiu com a cabeça.

      — E o primeiro-ministro também.

      — Para onde é que vamos? E durante quanto tempo?

      Ela respondeu.

      — O que é que eu vou fazer durante duas semanas?

      Chiara entregou-lhe a fotografia.

      — É impossível conseguir terminar isto.

      — Fazes o máximo que conseguires.

      — E vou deixar outra pessoa tocar no meu trabalho?

      — Não é o fim do mundo.

      — Nunca se sabe, Chiara. Talvez seja.

      Caminhando alguns passos ao longo do cais, havia uma ponte de ferro (a única em Veneza) e, no lado oposto do canal, uma ampla praça chamada Campo di Ghetto Nuovo, onde se situavam um museu, uma livraria e os escritórios da comunidade judaica. A Casa Israelitica di Riposo, um lar para idosos, ocupava o flanco norte. Junto da mesma, havia um austero memorial em baixo-relevo, em homenagem aos judeus de Veneza que, em dezembro de 1943, tinham sido reunidos, detidos em campos de concentração e, mais tarde, assassinados em Auschwitz. Dois carabinieri fortemente armados vigiavam o memorial a partir de um posto fortificado. Das duzentas e cinquenta mil pessoas que ainda habitavam nas ilhas de uma Veneza que se afundava, só os judeus precisavam de proteção policial vinte quatro horas por dia.

      — Espero que não haja nenhum problema — disse o rabino Zolli.

      — O habitual — murmurou Gabriel.

      — Fico aliviado.

      — Não fique.

      O rabino riu-se baixinho e passeou o olhar pela mesa, satisfeito, pousando-o brevemente nos dois netos, na esposa e, finalmente, na filha. A luz da vela refletia-se nos olhos de Chiara, que eram cor de caramelo salpicados de dourado.

      — A Chiara nunca esteve tão radiante. Obviamente, faze-la muito feliz.

      — A sério?

      — É certo que tem havido alguns percalços no caminho. — O tom do rabino foi admoestatório. — Mas garanto-te que ela se considera a pessoa mais sortuda do mundo.

      — Receio que essa honra me pertença.

      — Ouvi dizer que ela te enganou com os planos de viagem.

      Gabriel franziu o sobrolho.

      — De certeza que há algum excerto na Torá que proíba esse tipo de coisas.

      — Não me lembro de nenhum.

      — Provavelmente, foi melhor assim — admitiu Gabriel. — De outra forma, duvido que tivesse concordado.

      — Fico satisfeito por finalmente terem conseguido trazer as crianças a Veneza. Mas temo que tenham vindo numa altura complicada. — O rabino Zolli baixou a voz. — O Saviano e os seus amigos da extrema-direita despertaram forças obscuras na Europa.

      Giuseppe Saviano era o novo primeiro-ministro italiano. Era xenófobo, intolerante, sem qualquer respeito pela imprensa livre e com pouca paciência para detalhes como o parlamentarismo ou o Estado de Direito. Tal como o seu amigo íntimo, Jörg Kaufmann, o neofascista novato que ocupava a chancelaria da Áustria.


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