A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910). Abreu Francisco Jorge de
teve um sobresalto pavoroso. Outra denuncia, d'esta vez bem recheiada de pormenores, assignalava ao juizo de instrucção criminal a organisação d'um complot, cujo objectivo era não só a eliminação do dictador João Franco, que se propunha á viva força consolidar e engrandecer o poder real, mas o de derruir, n'um golpe de audacia, as instituições monarchicas. Dizia-se que n'esta altura da conspiração os republicanos não contavam simplesmente com o apoio e a collaboração dos dissidentes, que, tendo começado por lançar a semente da revolta politica no cavaco animado d'uma pastelaria da Avenida, já tratavam a serio d'uma mudança de regimen. Dizia-se tambem que os chefes em evidencia, os organisadores do movimento revolucionario – Antonio José de Almeida, Affonso Costa e João Chagas – tinham procurado o auxilio d'uma parte dos libertarios, homens de acção energica, dispondo de meios de combate essenciaes á dispersão, no momento propicio, das forças defensoras da monarchia e que essa fracção do partido anarchista portuguez promettera aos republicanos uma parcella consideravel do seu esforço.
A bomba, o engenho destruidor, que é o pezadelo do que se convencionou denominar uma sociedade regularmente constituida, passou então a ser a sombra espectral das regiões policiaes. Descobrir a fabrica do explosivo, desvendar o recanto solitario onde, dia a dia, homens sem medo, sem hesitações, debruçados carinhosamente sobre pedaços de metal, apparentemente insignificantes, jogavam a vida com um desprezo titanico, era o sonho dourado do Cyro – o Cyro, que se gabava de conhecer todos os anarchistas militantes – e d'uma longa theoria de famintos, que espionavam para terem que comer.
Dois accidentes de trabalho, occorridos com pequeno intervallo um do outro, ergueram aos olhos coruscantes da policia uma pontinha do veu. O primeiro deu-se n'uma casa da rua de Santo Antonio á Estrella. Um operario do Arsenal de Marinha e o professor de ensino livre Bettencourt foram as victimas da explosão d'uma bomba – explosão provocada pela imprudencia do operario ao tentar soldar o apparelho ao fogo d'uma lampada. O segundo accidente alarmou a cidade na tarde d'um domingo sombrio. As campainhas dos telephones vibraram apressadamente communicando ás redacções dos jornaes a noticia do facto. Emquanto, a poucos passos, na Avenida, uma banda regimental deliciava centenares de pessoas descuidosas e a garridice feminina animava o quadro d'uns tons voluptuosos, alguns revolucionarios, encafuados n'um modesto quarto de estudante, na rua do Carrião, preparavam tranquillamente o exterminio da guarda pretoriana. De repente, um estrondo formidavel sobresaltou a visinhança. Viu-se sahir da janella d'esse compartimento acanhado e inexpressivo uma lingua de fogo e d'ahi a momentos uns transeuntes mais corajosos, um bombeiro voluntario e um policia defrontavam o espectaculo commovedor de dois cadaveres mutilados em meio d'um armazem de bombas.
O Cyro, prevenido do facto, não tardou a apparecer no local, esbofando-se por apprehender o alcance de tamanha revelação. Os nomes dos dois mortos não figuravam na sua lista de anarchistas; o do preso (Aquilino Ribeiro) que a judiciaria já fizera conduzir á esquadra proxima e que evitara, n'um gesto de gavroche, o ser apanhado pela machina photographica d'um reporter, tambem lhe não soava familiarmente ao ouvido. O caso era de embatucar… Os outros chefes ao serviço do juizo de instrucção perdiam-se egualmente em conjecturas. Adivinhavam no desastre qualquer coisa de muito tragico e de muito ameaçador para a segurança do regimen vigente, mas não ligavam a occorrencia a outros incidentes de menor importancia, que, todos arrumados methodicamente, poderiam talvez fornecer uma indicação preciosa.
Ao cahir da noite, quando a noticia do facto se divulgou pela Baixa e pelos centros de palestra, o espanto e o terror invadiram e fizeram emmudecer muita gente. A policia ainda tentou, com um truc velho, projectar alguma luz no inesperado acontecimento. Sem perda de tempo, levou á Morgue o estudante preso no local da explosão e, collocando-o em face dos corpos esphacelados dos seus dois camaradas, forcejou por arrancar-lhe uma confissão plena. O sobrevivente do desastre sensibilisou-se, é certo, á vista dos cadaveres, mas as lagrimas que no momento derramou não lhe despegaram dos labios a denuncia apetecida. O truc não surtiu effeito.
Restava applicar á imprensa a mordaça do estylo. O dictador João Franco fel-o sem rebuço, auxiliado por alguns jornaes que, longe de reagirem contra esse costume intoleravel de consentir que o chefe do governo ditasse pelo telephone as poucas phrases em que a noticia de qualquer facto podia ser transmittida ao publico, se apressaram a recordar-lhe a existencia d'uma lei, que era feroz armadilha para insubmissos. Quer dizer: esses jornaes mettiam complacentemente, e até com certo jubilo, o pescoço na canga da oppressão. Ainda não esquecemos o dialogo telephonico travado na noite d'esse domingo melancholico entre o presidente do conselho e a redacção d'um diario de Lisboa:
– V. ex.ª consente pormenores da explosão? perguntava o jornal.
– Não tenho nada com isso, respondia o primeiro ministro de D. Carlos… os senhores bem sabem o que lhes compete fazer.
– Mas a lei de 13 de fevereiro?..
– Ah! sim, está em vigor…
– E… v. ex.ª applica-a?
– Naturalmente.
– Mas o publico precisa ser informado…
– Bem sei… mas eu nada tenho com isso… mandem ao governo civil. Vou recommendar para ali que forneçam a todos os jornaes uma nota resumida do caso.
E assim succedeu. Uma hora depois, os reporters que tinham ido ao bebedouro commum da informação officiosa regressavam com cinco linhas – cinco linhas apenas, não exageramos – em que se registava, n'uma linguagem quasi sybillina, a descoberta, por meio do desastre, do fabrico de explosivos para fins manifestamente criminosos. Uns jornaes publicaram essa nota na integra, sem resalvarem a proveniencia; outros, mais escrupulosos, precederam-na d'outras linhas que a reduziam ao seu justo valor; um unico teve a coragem de transgredir as ordens do dictador, noticiando ao mesmo passo o nome d'uma das victimas da explosão!..
O relato pormenorisado do acontecimento com as competentes gravuras (photographias dos cadaveres na Morgue, croquis do interior do quarto de estudante e a reconstituição graphica da scena commovente) foi no dia immediato exportado para o Brazil e inserto n'uma folha do Rio, afim de que se não perdesse totalmente o trabalho do noticiarista, a presteza do photographo e a habilidade do desenhador.
CAPITULO II
Um «accidente de trabalho» e uma evasão romanesca
O proprio Aquilino Ribeiro – que, diga-se de passagem, é um intellectual – descreveu mais tarde ao signatario d'estas narrativas como occorrera o desastre da rua do Carrião.
– Aquillo foi assim – contou elle. Eu nunca tinha feito bombas, apesar das minhas convicções já me terem enfileirado n'um grupo libertario. Sabia que n'essa occasião, e mercê da preparação do movimento revolucionario do 28 de janeiro, esse fabrico se alargara a diversos pontos de Lisboa e mesmo fóra de Lisboa e dava-me intimamente com diversos militantes e propagandistas da acção directa. Tinha até cooperado na organisação do ataque aos quarteis e ás forças da municipal, indo com Alfredo Costa e outros alugar quartos em varios pontos estrategicos, d'onde projectavamos dynamitar essa legião fiel ao regimen monarchico. Um bello dia o dr. Gonçalves Lopes pediu-me para levar ao meu quarto dois caixotes com bombas. Hesitei, observando-lhe que a dona da casa podia attentar no facto, mas elle desvaneceu-me todos os receios, explicando-me que necessitava absolutamente transformar o meu aposento n'um deposito eventual de explosivos.
«Combinou-se o transporte dos caixotes do consultorio do dr. Gonçalves Lopes, na rua do Ouro, para ali, mas, ou porque elle não me pormenorisasse bem como a coisa devia ser feita, ou por outro motivo de que me não recordo, o moço incumbido de os levar á rua do Carrião teve de arripiar caminho e voltou com os caixotes para o consultorio. Grande pasmo do dr. Gonçalves Lopes e, no dia seguinte, após uma breve explicação que eu e elle tivemos no Suisso, os caixotes (cada um pesando approximadamente sessenta kilos) tornaram a emprehender a viagem para o meu quarto. Desde então, passei tambem a collaborar regularmente no fabrico de explosivos.
«Vendo o dr. Gonçalves Lopes e o commerciante Belmonte, seu companheiro na manipulação dos engenhos, carregarem umas tantas bombas, aprendi facilmente a operação e no domingo do desastre em que nos reuniramos para a continuar já me