A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910). Abreu Francisco Jorge de

A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910) - Abreu Francisco Jorge de


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Lopes parou a descançar e disse-me:

      « – Você agora podia incumbir-se do resto…

      «Eu não respondi de prompto e, ficando assente que á noite recomeçariamos a operação, dispuzemo-nos, no emtanto, a carregar mais tres para dar por finda a tarefa da tarde. Cada um de nós pegou n'uma bomba vasia. Na minha frente estava o dr. Gonçalves Lopes e mais adeante o seu companheiro. O dr. Gonçalves Lopes, descuidando-se um pouco nas precauções que era de uso tomar em taes circumstancias, principiou a martellar com força no engenho que tinha na mão. Ainda lhe recommendei prudencia; mas elle sorriu-se, incredulo, do meu receio, e continuou o trabalho. De repente, um grande estrondo atordoou-me sensivelmente. A bomba do dr. Gonçalves Lopes explodira. Vi-o cahir esphacelado, salpicando-me de sangue e vi o commerciante Belmonte avançar para mim, soltando um grito como o d'um animal ferido de morte. Acolhi-o nos braços, mas tive que o largar logo a seguir porque já agonisava.

      «Foi um instante de dolorosissima atrapalhação. Dirigi-me a outro quarto a lavar-me, porque estava negro como um carvoeiro e quando voltei ao meu aposento pensei em fugir. Mas, como? O meu chapeu parecia um crivo, o vestuario não inspirava confiança, as mãos e a cara denunciavam-me, trahiam-me… Passeei uns segundos pelo quarto sem saber o que fazer e quando percebi que gente estranha subia a escada, a inquirir do estrondo, fui estupidamente esconder-me debaixo da cama. Os primeiros minutos passei-os quieto e calado n'esse refugio d'occasião. Mas, logo que ouvi a curta distancia os commentarios da policia e as interrogações dos reporters, longe de procurar misturar-me com o meu amigo e os nossos collegas – Aquilino Ribeiro era n'esse tempo collaborador da Vanguarda– comecei a agitar-me e despertei a attenção do chefe Ferreira. Estava apanhado.

      – Levaram-me para o governo civil e depois á Morgue. Assediaram-me de interrogatorios. Pouco antes, com a explosão da rua de Santo Antonio, á Estrella, tinham sido presas, por suspeitas, umas cem pessoas. Com a da rua do Carrião, apesar da extensão enorme do fabrico das bombas em Lisboa, restringi tanto o cerco da curiosidade policial, que o chefe Ferreira apenas conseguiu incommodar um pobre homem em casa de quem foi encontrado um cartão de visita com o meu nome. Depois; estive dois mezes incommunicavel, durante os quaes só me queixei d'uma coisa: da má qualidade da comida fornecida aos presos.

      «Durante o periodo da incommunicabilidade procurei, naturalmente, libertar-me da prisão. Fiz para isso, com a maior paciencia, variados preparativos. Aproveitei o azeite que condimentava as minhas rações de bacalhau para amaciar os gonzos e os ferrolhos do carcere. Com o miolo de pão fiz prodigios de habilidade e de disfarce. Em summa, quando me levantaram a incommunicabilidade já tinha quasi tudo organisado para a evasão.

      «Uns amigos prometteram-me auxilio. Era necessario arranjar um automovel para me receber á sahida da esquadra do Caminho Novo e transportar-me a logar seguro. Creio, porém, que os donos de dois d'esses vehiculos, aos quaes os meus amigos se dirigiram, os não puderam dispensar e uma bella noite, quando consegui fugir do carcere, encontrei-me na rua, só, exposto a uma chuva torrencial que me transformava n'um pintainho. Uma vez transposto o muro do Posto de Desinfecção, contiguo á esquadra e tendo-me deixado escorregar por uma guarita onde uns operarios guardavam a ferramenta, atrevi-me a passar deante da sentinella da esquadra, como se fôra um simples transeunte que recolhia a casa a deshoras.

      «Fui á Estephania á procura d'um conhecido. Bati. Ninguem me respondeu. Ou melhor, ninguem me abriu a porta. No trajecto, até lá, sempre debaixo de agua, encontrei uma carruagem particular, vazia, mas o cocheiro, quando lhe fallei em transportar-me, olhou-me de soslaio e respondeu com uma evasiva. Que admira! A barba hirsuta dava-me certamente um aspecto horrivel. Tinha sobre o casaco uma blusa com bolsos collados a miolo de pão… As botas e as calças destilavam immensa lama… Da Estephania dirigi-me á Praça da Figueira. Deram as oito da manhã e calculei que a essa hora a policia, sabendo da minha fuga, já andasse pressurosa no encalço do evadido. Na Praça comprei um molho de hortaliça e tratei de occultar o rosto o mais possivel. Fui a casa do Alfredo Costa, á rua dos Retrozeiros. Dormia ainda. Fui a outra casa. A pessoa que a habitava aconselhou-me o esconderijo n'outro ponto. Não acceitei o conselho e encafuei-me na taberna do João do Grão, na travessa da Palha.

      «Ahi reparei as forças perdidas com essa noitada de anciedade, de cançaço e de chuva, comendo meia desfeita e tomando um litro de vinho. Momentos depois, apparecia-me então o Alfredo Costa e eu entrava para uma casa da maior confiança, conservando-me em Lisboa, escondido da policia, durante dois mezes…»

      Preso um dos fabricantes de bombas, a policia volveu os olhos para todos os amigos de Aquilino Ribeiro, calculando ser-lhe relativamente facil capturar, acto continuo, o que ella appelidava os cumplices das vitimas. Um dos alvejados pela perseguição da Bastilha, o dr. Alberto Costa, tendo-se injustamente convencido de que o preso falára, abalou para Hespanha. Deu-se a fuga de outros revolucionarios, as diligencias policiaes arrastaram-se mollemente e com evidente desorientação e, apezar de que o desasocego dos conspiradores era de molde a infundir suspeitas aos menos precavidos, ainda d'esta vez a espionagem do juizo de instrucção não logrou desenrolar o fio da meada. E que admira, se no periodo de descuidosa imprevidencia em que o dr. Alberto Costa passeiava nas ruas de Lisboa com uma maleta cheia de bombas e se divertia a bailar, sobre uma cama que occultava uma caixa d'esses engenhos, os Argus da Parreirinha nem por palpite o encaravam com desconfiança!..

      O fabrico de explosivos não occupava simplesmente meia duzia de pessoas. Absorvia os cuidados de diversos grupos. Generalisara-se por uma fórma assombrosa e, dentro e fóra de Lisboa, trabalhava-se afincadamente em centenas de apparelhos destruidores. Cada dia que passava sobre as arranhadelas da dictadura via surgir para a lucta novos combatentes e novas dedicações. Então, não era só o partido republicano que protestava contra o existente; os seus clamores de revolta echoavam na consciencia de muitos monarchicos; a legião dos que, na primeira hora de enganadora miragem, tinham acolhído o governo João Franco como o advento de um Messias, esboroava-se a olhos vistos. A atmosphera em volta do throno carregava-se progressivamente de indignação, de odio, de intranquillidade e, a não ser D. Carlos, que nunca se sensibilisára com a agitação da massa popular, e o ministerio franquista, que suppunha governar a contento do paiz, todos os outros elementos argamassados pelos favores do regimen sentiam, palpavam, futuravam, com maior ou menor largueza de vistas, a derrocada imminente.

      A preparação do 28 de Janeiro proseguia com alma, com actividade febril. A compra de armamento e a sua introdução em Lisboa, atravez das barreiras fiscaes, haviam tomado tal incremento que os proprios organisadores do movimento se admiravam da cegueira da policia. As reuniões secretas succediam-se vertiginosamente. Havia como que a ancia de chegar ao fim da jornada revolucionaria, fazendo d'um só folego a corrida heroica para o triumpho ou para a derrota.

      CAPITULO III

      Os republicanos e os dissidentes organisam o 28 de Janeiro

      Quem, a dentro do partido democratico, teve a iniciativa da projectada revolta? Não é facil responder, porque ella estava desde muito no animo dos mais fogosos caudilhos d'esse partido. Entretanto, podemos conjecturar que, sabendo João Chagas dos trabalhos revolucionarios que alguns dos seus companheiros de lucta já tinham annos antes encetado, procurasse aproveital-os, realisando ao mesmo tempo a approximação dos republicanos e dos dissidentes, que a dictadura franquista hostilmente arredara do contacto do rei Carlos. Os primeiros passos para o movimento foram dados em casa do visconde da Ribeira Brava, de todos os amigos do sr. Alpoim o que então se mostrava mais inclinado a abandonar a monarchia. Conta elle o seguinte:

      «Quando se tinham malogrado todos os esforços dos partidos para subjugar o despotismo do rei e de João Franco fui procurado pelo infeliz Alberto Costa, que me propoz tomar eu a iniciativa da revolta. Hesitei, objectando que para isso me faltavam os elementos populares, que estavam todos no partido republicano, e que sósinho nada poderia fazer.

      « – E se você se entendesse com o João Chagas? – retorquiu Alberto Costa.

      « – N'esse caso estou certo de que fariamos alguma coisa de importante.

      «Ficou logo aprazado um encontro com João Chagas, que se efetuou n'esse mesmo dia, a dez de julho (1907) se não me engano, á meia noite, junto do coreto da Avenida. Ahi assentámos


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