A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910). Abreu Francisco Jorge de
salas dos passos perdidos… Para o movimento de 28 de Janeiro tambem serviram quasi diariamente ás reuniões de officiaes do exercito de mar; para lá enviou o dr. Alberto Costa duas caixas de bombas que mais tarde sahiram, a pau e corda, dos armazens para o consultorio do dr. Gonçalves Lopes; ali se reuniram diversos cabos e praças da guarda municipal aquartelada proximo das Necessidades, que faziam então causa commum com os revoltosos, e os sete grupos de 40, 60 e 30 homens destinados ao assalto aos quarteis. A essas reuniões assistiam sempre João Chagas, Alvaro Pope e Alfredo Leal. O proprietario dos armazens chegou a mandar fazer caixas de embarque e n'esse estabelecimento se encaixotaram as armas dos grupos populares, que sahiram para o seu destino levando esta marca: Telmo Bandeira, S. Thomé. E a policia, sempre ás aranhas…
Como descobriu ella, afinal, o tal fio da conspiração a que atraz alludimos? D'este modo: ao chefe d'um dos grupos populares, Victor de Sousa, aggregou-se mais um combatente, um policia, seu compadre e amigo, de serviço, ao que parece, á porta do dictador. Iniciou-o no mysterio, indicando, ao mostrar-lhe as armas já em sua casa na rua Luz Soriano, que João Chagas e Alfredo Leal eram os incumbidos especialmente d'essa distribuição de alta responsabilidade. Na madrugada seguinte era preso Victor de Sousa. Alfredo Leal tinha ainda nos armazens grande quantidade de armamento por entregar. Apesar do segredo em que a policia envolveu aquella captura, Affonso Costa e João Chagas souberam-na a tempo e pelo telephone avisaram o proprietario dos armazens para que puzesse a salvo as armas restantes. Após o aviso, o visconde da Ribeira Brava correu á rua de Santo Antão. Os armazens estavam cercados pela policia. Era urgente proceder com habilidade e frustrar os designios do juizo de instrucção.
Os armazens teem uma portinha que deita para as escadinhas de S. Luiz em frente da entrada do Coliseu dos Recreios. A sahida das armas devia ser feita por essa portinha, caso a policia não houvesse dado por ella… como não deu. As armas foram enroladas, em tapetes e, constituindo tres fardos, Alfredo Leal, seu filho José Saragga Leal e um criado de confiança, transportaram-nas á calçada de Sant'Anna, onde o visconde da Ribeira Brava as esperava mettido n'um coupé, para as ir occultar provisoriamente na sua casa, em plena Avenida da Liberdade. O material da revolta salvou-se, mas na madrugada seguinte Alfredo Leal era preso no Dafundo. João Chagas, que na vespera jantara com elle na Charcuterie Française, cahira em poder da policia ao sahir d'esse estabelecimento da rua Nova do Carmo. Escusado será dizer que as buscas emprehendidas nos armazens da rua de Santo Antão não deram o mais insignificante resultado. No emtanto, o dictador fazia espalhar pouco depois que a policia tinha ali encontrado armas e bombas em abundancia…
N'esta altura da narrativa cabe referir que muitos dos individuos, tanto da classe civil como da classe militar, implicados na conspiração, só foram sobejamente conhecidos do publico quando, insistindo na conjura, se misturaram á organisação da revolta de 4 e 5 de outubro. Outros houve, em compensação, que, vendo mallogrados os esforços applicados ao 28 de janeiro, abandonaram definitivamente os trabalhos revolucionarios e foram surprehendidos pela proclamação da Republica n'um alheiamento completo da agitação politica.
O almirante Candido dos Reis, cuja acção no complot de 4 e 5 de outubro teve uma evidencia excepcional, garantindo, além de tudo o mais, pela sua figura de destaque, a adhesão de diversos officiaes do exercito de mar e terra, no 28 de janeiro sobresahiu por uma forma inolvidavel. Sob as suas ordens é que devia dar-se então o assalto ao S. Gabriel e ao quartel dos marinheiros; com elle conferenciaram muitas vezes o sr. Alpoim e outros elementos da revolta; para elle estava naturalmente destinado um papel preponderante, muito embora da sua acção individual não dependesse, como de facto não dependia, pôr em andamento, com determinado signal e no momento dado, o complicado mechanismo da revolução; com elle estavam promptos a exercer acção decisiva alguns officiaes dos quaes ninguem suspeitava e que á quasi totalidade dos monarchicos pareciam indifferentes ou pelo menos indecisos.
Assim, a policia, prendendo alguns dos vultos do partido republicano que, a bem dizer, não occultavam as suas démarches revolucionarias, deixava exactamente fóra da rêde de perseguições uma boa somma de executores d'esse plano maduramente combinado e que, uma vez resolvido o ataque formal ás instituições monarchicas, eram capazes de, readquirindo certa autonomia, lançar fogo ao rastilho previamente preparado. É voz corrente que o movimento do 28 de janeiro esteve para explodir antes d'essa data e que n'aquelle mesmo dia soffreu de hora para hora diversos adiamentos. Pois não andará longe da verdade quem affirmar tambem que, se as prisões effectuadas na segunda quinzena de janeiro embaraçaram fortemente a eclosão do movimento, só uma intervenção muito especial é que impediu que, apesar de tamanho contratempo, a tentativa de revolta se esboçasse com uma nitidez assombrosa.
Por mais do que uma vez, quando nos dirigentes da conspiração lavrava, não diremos desanimo, mas comprehensivel reluctancia em impellir para o campo de batalha a grande massa organisada dos revoltosos, houve necessidade de refreiar com energia os impetos generosos de creaturas ardentes, illuminadas, que não consentiam um minuto de reflexão sobre a opportunidade da explosão revolucionaria. Essas creaturas tudo sacrificavam ao desejo irreprimivel de combater a monarchia. E uma d'ellas, ponderando-se-lhe um dia que, estando presos em quarteis da municipal elementos de valor não só no partido republicano como na organização do movimento, a menor agitação extemporanea, a menor revolta imprudente, provocariam, sem duvida, a sua condemnação á morte, uma d'ellas, repetimos, depois de pesar o argumento, replicou sem commover-se:
– Que importa!.. São mais tres ou quatro cadaveres!..
Mas, retomemos o fio da narrativa. Presos e incommunicaveis dois dos chefes da revolta, acompanhados d'outros individuos de menores responsabilidades na empresa, não occorreu, como seria logico, uma paragem na sua organisação. A idéa predominante, n'essa occasião, não foi a de sustar os preparativos revolucionarios. Foi exactamente a opposta: foi a de se dar pressa ao rebentar da bomba, porque todos ou quasi todos se convenciam de que o dictador não perdoava aos inimigos das instituições monarchicas. Para mais, n'essa altura do complot, o governo João Franco, ainda que não possuisse na sua mão todos os fios do trama revolucionario, sabia muito bem, por informações d'uma relativa precisão de pormenores, que o movimento não era limitado a uma simples insurreição de quartel nem a uma manifestação armada de meia duzia de visionarios.
O governo João Franco sabia perfeitamente que na conjura entravam tropa e a classe civil, que, se a primeira estava armada, a segunda não sahiria á rua desprevenida e que a monarchia vivia sobre a ameaça constante da fornalha republicana, para a qual a dictadura deitara o melhor do seu combustivel.
Mas se o governo João Franco sabia tudo isto que o levava a acautelar-se o melhor possivel contra a probabilidade de gravissimos acontecimentos, ignorava, por outro lado, a fé que dominava o povo alliciado para a revolta. O governo João Franco não fazia caso nenhum d'esse povo, calculando erradamente que a massa soberana e anonyma só se moveria tendo á frente os seus grandes idolos partidarios. Ignorava absolutamente a importancia e a valentia d'essa massa e de quanto ella é capaz, lançada decididamente no caminho da reacção ao despotismo. O povo sem Antonio José, João Chagas, etc. – pensava o dictador – não se atreve a protestar com as armas na mão. Uma vez presos esses homens, os revolucionarios civis absteem-se da lucta e ficam só em campo os militares, que uma serie de medidas urgentes e rigorosas recolhe egualmente á inacção e ao silencio. Assim pensava o governo João Franco alguns dias antes do 28 de janeiro e assim tinha pensado o juiz de instrucção criminal, na parte referente a fabricantes de bombas, quando a explosão da rua do Carrião lhe entrou pela porta dentro e desauctorisou, por completo, a famosa lista negra do Cyro. Um e outro viviam redondamente enganados.
CAPITULO V
Marca-se a revolta para as 4 da tarde do dia 28
A prisão do dr. Antonio José de Almeida contribuiu bastante para que a febre revolucionaria augmentasse de modo consideravel. O dr. Affonso Costa, que, absorvido pelo processo Djalme, andava um tanto afastado da preparação da conjura, voltou a ella ainda com mais ardor. Os conspiradores passaram a reunir-se n'uma casa da rua do Desterro, pertencente ao sr. Luiz Grandella, fez-se nova acquisição de armamento (parte d'elle fornecida pelos dissidentes) ultimaram-se as disposições de ataque e de conquista e a data de 28 passou a ser mais anciosamente