Pero da Covilhan: Episodio Romantico do Seculo XV. Brandão Zephyrino
ero da Covilhan: Episodio Romantico do Seculo XV
CONVERSA PREAMBULAR
Eu não sei bem o que venho aqui fazer.
Não venho, de certo, apresentar Zeferino Brandão, pois eu proprio lhe fui apresentado, noviço em lettras, quando elle já era, na egreja litteraria, officiante de pontifical, bemquisto e bem acolhido dos sacerdotes maximos, com alguns dos quaes privava, de irmão a irmão.
Com effeito, – e sem que saiba dizer de positivo ha quantos annos, não devendo comtudo andar muito longe dos trinta, – foi na primeira casa que João de Deus habitou em Lisboa, na rua dos Douradores, e no proprio quarto do poeta, que Zeferino Brandão e eu nos avistámos a vez primeira. Era elle alferes ou segundo tenente d'artilheria, eu, cadete de lanceiros.
Vêrmo'-nos, e ficarmos sendo, logo ali, amigos velhos, foi obra de um momento. Eu tinha na minha bagagem uns versitos, que apresentava a medo, e que um dia Manoel de Arriaga leu em voz alta, depois do café, na mesa dos hospedes, com a mesma emphase com que leria versos de Victor Hugo, conquistando-me uma ovação no meio d'aquelle auditorio ingenuo, e deixando-me a mim proprio deslumbrado de taes versos serem meus. Coitados! Por onde andarão elles!
Zeferino Brandão, já a esse tempo tinha poetado muito e, no meu entender de então, hombreava com todos os da sua vida de Coimbra, amigos de tu, que, sempre que se encontravam, tinham tão bons abraços a trocar, tão bellas coisas a relembrar e a dizer. Eram o João de Deus, que estava ali; o Arriaga, que vinha todos os dias; o Anthero, que apparecia de quando em quando; o Simões Dias, o Candido de Figueiredo, o Guimarães Fonseca, o João Penha, a todo o momento falados, porém ausentes.
Por signal, que a esse mesmo tempo Zeferino Brandão se lembrou de fazer annos, e nada menos que vinte e seis. A lembrança foi tida como disparate de marca maior, e como antecedente de pessimos effeitos. E tanto que João de Deus lhe disparou, logo ali, á queima roupa:
Com que então, cahiu na asneira
De fazer na quinta feira,
Vinte e seis annos! Que tolo!
Ainda se os desfizesse…
Mas fazel-os, não parece
De quem tem muito miolo!
Averiguou-se, porém, que Zeferino era reincidente no delicto, pois no anno anterior fizera o mesmo, e mostrava-se disposto a repetir no immediato. E por isso João de Deus accrescentava:
Não sei quem foi que me disse,
Que fez a mesma tolice
Aqui o anno passado…
Agora o que vem, apósto,
Como lhe tomou o gosto,
Que faz o mesmo? Coitado!
Não faça tal; porque os annos
Que nos trazem? Desenganos
Que fazem a gente velho.
Faça outra coisa; que em summa
Não fazer coisa nenhuma,
Tambem lhe não aconselho.
Zeferino Brandão tinha boa vontade de seguir á risca a advertencia do poeta; não poude no emtanto satisfazer-lhe o desejo. Effectivamente, fez outras coisas, livros excellentes, por exemplo; mas accumulou, e foi tambem fazendo annos, com a maior moderação, o mais devagar que lhe foi possivel, mas, em summa, fazendo-os e contando-os. Era o que João de Deus lhe tinha dito:
Mas annos, não caia n'essa!
Olhe que a gente começa
Ás vezes por brincadeira,
Mas depois, se se habitua,
Já não tem vontade sua,
E fal-os, queira ou não queira.
Para mim, n'esse bom tempo da vida, Zeferino Brandão vinha já, não direi da noite dos tempos, mas de um passado glorioso. Era do fraternal e alegre convivio d'aquelles que mais influencia exerciam nos nóvos de então, e sabe-se quanto é ciosa e aristocrata a superioridade intellectual, que não desce nunca a nivelar-se com os mediocres, e que só anda hombro a hombro com os seus pares.
Depois, tive occasião de lhe definir melhor as referencias no espaço e no tempo, com respeito ás gerações academicas, que elle frequentou, áquellas de que foi continuador, e ás que o continuaram a elle proprio.
Mas, em todo o caso, nunca poderei esquecer que, nas lettras, fui seu caloiro.
Portanto, toda e qualquer ideia de apresentação, ou de recommendação seria absurda.
Mas Zeferino Brandão exigiu-me que o acompanhasse n'esta sua quarta excursão pelo mundo aventuroso da publicidade, não por medo d'ella, que o seu animo é seguro, e o seu lucido espirito affeito de ha muito a ponderar quanto valem baldões e glorias litterarias; mas verdadeiramente tão só, pois outra explicação lhe não posso dar, por mero capricho de artista.
Dêmos, por conseguinte, o braço e vamos ambos de companhia, uma vez que esta lhe é agradavel, e que eu encontro n'ella prazer e honra.
Do muito que na mocidade poetou, fez Zeferino Brandão apuramento selecto em um volume, a que deu por titulo Paginas Intimas, do qual depois fez segunda edição, mais aprimorada ainda, e tambem difficil já de encontrar nas livrarias. Não é vulgar que este caso succeda, e não é pequena honra, nem pequena satisfação para um auctor, e sobretudo para um poeta, poder referil-o.
Os taes annos, que a gente se habitúa a fazer, e que depois cada qual faz, queira ou não queira, foram arredando o poeta das tentações da rima, sem comtudo o desviarem da verdadeira poesia, que elle continuou procurando sempre, quer nos panoramas da natureza, observada em longas viagens artisticas, e descripta posteriormente em paginas coloridas e illuminadas, quer na evocação ideal dos tempos volvidos, trazendo á tela do presente, memorias, personagens e feitos do passado.
D'estas duas predilecções da sua mente, a um tempo assimiladora e imaginosa, são documento bastante os dois livros de valor, com que a sua bagagem litteraria se enriquece. Um d'elles, Monumentos e lendas de Santarem, é um verdadeiro padrão de sentimento, erguido ás recordações gloriosas d'essa forte e vetusta cidade medievica; o outro, primeiro de uma collecção de Viagens, que está reclamando, a brados, os seus successores, é uma soberba descripção da Belgica moderna.
Avulsos, e dispersos pelos jornaes, andam capitulos e fragmentos descriptivos de uma excursão pela Italia, cuja leitura fugaz, ao tempo da publicação, nos deixou no espirito uma grata lembrança.
Compraz-se o escriptor, como se vê, e n'isto mesmo affirma intensamente o seu culto pelo bello poetico, em frequentar, tanto na vida de relação com o seu tempo, como na vida sonhadora a que o attraem os livros de outr'ora, os dominios artisticos, onde a sua phantasia de meridional mais á larga se expande.
Ali, os monumentos de mais de uma raça, livros de pedra abertos á meditação dos videntes, e as lendas populares tenazmente conservadas na memoria dos povos que se sobrepuzeram; aqui, ainda o passado, como centro de attracção maior; depois, primacialmente, as soberanias e magnificencias da arte, legados inestimaveis que as gerações foram transmittindo, e nos quaes vae encontrar as mais altas suggestões artisticas, e os mais profundos ensinamentos criticos, o gosto moderno.
Assumptos dignos de bem equilibrados e cultos engenhos, os quaes, tambem, só por si, dão medida do bom equilibrio e da alta cultura de quem os escolhe e professa.
Não são diversos os predicados do novo livro, que me encontro prefaciando. O auctor impressionou-se com a bella e romantica figura de Pero da Covilhã, a qual apparece na historia, um pouco esbatida, tão sómente pela exuberancia de luz com que se illuminam os quadros dos descobrimentos e conquistas subsequentes, que elle em tamanha parte preparou.
Essa figura, porém, tem contornos bem definidos, e Pero da Covilhã é, na epopêa dos Gamas e dos Albuquerques, um intelligente, um sagaz, um inolvidavel predecessor.
Envolve-o o escriptor n'uma intriga romantica, apenas a indispensavel para o seu proposito; mas de tal fórma se cinge ás linhas da realidade, que a figura se destaca viva, deante de nós, como realmente foi, e