Pero da Covilhan: Episodio Romantico do Seculo XV. Brandão Zephyrino
e assim o comprehendeu Zeferino Brandão, uma vez que a vida aventurosa do seu personagem dá que farte para todas as exigencias da concepção romantica, sem precisar dos acrescentamentos da imaginação.
O scenario em que elle expande a sua actividade, tão ousada e tão original, mesmo n'um tempo em que as mais famosas heroicidades não eram de extranheza, apparece-nos restabelecido, por tão singular poder de evocação, que nos sentimos viver n'elle, com os olhos cheios de encanto e a alma cheia de interesse, como se nós mesmos pertencessemos á época em que toda a acção do livro, muito mais historia do que romance, amplamente se desenrola.
Vêmos, logo no começo, a Sevilha do seculo decimo quinto, e o viver luxuoso das grandes casas de Hespanha, onde em muitas das quaes a cadeira senhorial ousava defrontar-se em orgulhos e pretenções com os thronos dos reis; e no solar magestoso dos Medina-Sidonia, vamos encontrar o pagem galanteador e diserto que, trazido d'ali a terras de Portugal, por cá se deixou ficar a pedido de Affonso V, servindo com o seu coração, que já era de portuguez, a patria de seus paes, assim restituida a elle proprio.
Esse pagem, depois escudeiro e cavalleiro, é acompanhado pelo auctor e pelo leitor, primeiro na sua missão e officio de personagem da côrte e do séquito real, durante o ultimo quartel de vida, tão agitado e tão pouco feliz, do rei, que em Portugal o havia detido e que sempre lhe dispensou o seu favor; depois, em toda a sua peregrinação ao Oriente, na demanda das terras do Preste, até dar fundo na Abyssinia, onde para sempre o detiveram; esmagando-lhe a alma n'um captiveiro perpetuo, que não deixou de ser profundamente tyrannico, embora lh'o houvessem tecido com laços de sympathia, doirado com o lustre das riquezas e das honras, agasalhado no ambiente da familia, e engrinaldado com as rosas do amor.
O idyllio amoroso, que constitue a trama romantica fundamental, d'onde veiu por fim a ser gerada esta successão esplendida de quadros historicos, passa-se na intimidade dos corações e das consciencias d'aquelles a quem um vivo affecto prendeu para sempre, mas para os quaes a mais viva aspiração da alma foi um sonho que jámais se realisou. Não se póde conduzir fio mais tenue, com mais delicadeza e mais pericia, atravez do labyrintho de rudes acontecimentos, onde as energias physicas do homem são postas a toda a prova, sem nunca se lhe embotar a agudissima sensibilidade do coração.
Parece-nos até, que a verdadeira e mais bella originalidade d'este livro reside no contraste a que damos relêvo agora. Os que tenham pensado encontrar n'elle uma obra de completa ficção, podem talvez ficar desapontados ante o predominio que ali assumem a exactidão, a abundancia, a veracidade historica. Mas a conducção do fio ideal e subtilissimo, de uma pura e platonica paixão amorosa, accendida nos mysterios de duas almas amantes, e alimentada em todo o decurso da vida com os oleos da religião e da cavallaria, com os incitamentos do dever e da honra, a habil e engenhosissima conducção d'esse fio, repetimos, com a qual o auctor parece nada se preoccupar sem que todavia um momento a descure, é uma das maiores provas que Zeferino Brandão nos podia dar, de quão delicado é o seu temperamento artistico, de quão profundo é o seu sentimento poetico, de quão esmerado é o seu fino gosto.
E aqui me deixaria longamente a palestrar com os leitores sobre os meritos da obra, que deante dos seus olhos vae deslisar, se não reparasse em qual deve ser já a sua impaciencia, e em como é tempo de os deixar a sós com o dono da casa, do qual sabem já que teem a esperar uma recepção de primôr.
26 de fevereiro de 1897.
FERNANDES COSTA.
ADVERTENCIA
O episodio, que vae ler-se, é, como todos os episodios romanticos, um pequeno espelho. Procurei dispô-lo em termos de reflectir uma luz calma e pura, como o céo transparente e sereno, e não reprezentar a vasa de lodaçaes, d'essas miserias, que são a mais viva chaga social de todos os tempos, o terrivel problema a resolver, o alpha e o omega das civilisações.
Sem sacrificar nem a sombra da verdade historica, não tive de roçar por impudencias, nem de envolver-me em meandros asquerosos, salvo no incidente da successão á corôa de Castella.
Não accuso de immoraes os que revolvem o lôdo.
A quem deixa estagnar a agua, pertence mórmente a responsabilidade na formação dos atoleiros. Mas alguns escriptores teem olhos de lynce para descobrir o mal, e de toupeira para enxergar o bem: uma cegueira lamentavel em ambos os casos.
No reinado de D. João II, em que se passa quasi totalmente o episodio, houve, como em todas as épocas, grandes virtudes e grandes vicios. D'estes não cuidei, porque não podia ir buscar a um meio, onde nunca estiveram, os meus dois protagonistas, que são verdadeiros no sentido eterno da palavra, antes de o serem no sentido historico.
– E como faze-los reprezentar tambem papeis violentos em dramas ou tragedias, que despertassem interesse, reconhecendo eu que a historia, á qual subordinei a sua acção, cortaria implacavelmente as azas da minha phantasia?
Era porventura mais impressivo, ou ao menos mais accommodado ao gosto hodierno, um enredo cheio de peripecias fabulosas. No colorido, porém, d'esses quadros phantasticos deveria empregar as tintas modernas, e nem eu sabia pinta-los, nem elles eram authenticos.
Commemóro emfim, conforme sei e pósso, o quarto centenario do descobrimento do caminho maritimo da India.
Zephyrino Brandão
I
DESPEDIDA
O leitor já visitou Sevilha? Pois se nunca a enxergou sequér, affirmam por lá os nossos visinhos, que não vio maravilha.
Os attractivos da vida sevilhana seduzem-nos tanto, que nos offerecem crêr no velho proverbio andaluz, e compensam certamente a princeza do Guadalquivir do muito que lhe falta em monumentos para ser admirada, e em melhoramentos materiaes para rivalisar vantajosamente com as cidades modernas.
O leitor e eu vamos percorre-la no terceiro quartel do seculo XV, em um dia calmoso do estio.
Abrasa tanto calor!..
Em breve zombaremos d'elle.
Os arabes, que faziam de seus palacios pequenos paraizos, rodeavam-n'os de jardins e fontes, no intuito de refrescar as regiões ardentes, que povoavam, e até no interior dos proprios edificios possuiam esses mesmos refrigerios. Ora as casas de Sevilha traduzem fielmente os costumes de seus antigos senhores; e, como temos de entrar em uma d'ellas, poupar-nos-hemos a insolações.
Cingem Sevilha fortes muralhas, do alto das quaes se contempla a extensa planicie do vastissimo contorno, povoado de vistosas e alegres alquerias.
Pela porta de Triana sae-se ao importante arrabalde d'este nome, e com elle se communica por uma ponte de madeira fundada sobre grandes barcas, que com grossas cadeias de ferro a sustentam, amarradas no castello. Sob esta corre caudaloso o Guadalquivir, que parece envaidecido da sua justa nomeada, não só por dar ancoradouro seguro ás maiores naves, que sulcam os mares, senão por facilitar assim as relações commerciaes, e animar a florescente industria fabril dos sevilhanos; – o que torna riquissima de população e haveres a formosa metropole andaluza.
Cêrca do rio ergue-se a torre, que, pelo primor da fabrica, se denomina do Ouro.
Á cathedral, cuja edificação começou quasi ao entrar do seculo, em que a estamos vendo, sobre os alicerces da antiga mesquita, chama-se vulgarmente a grande, como á de Toledo a rica, á de Salamanca a forte e á de Leão a bella.
Ao lado d'essa immensa móle altea-se suberba a torre de tijolo côr de rosa, que coroava a mesquita, e é rematada por outra de menores dimensões com variedade de pinturas mui singulares em todo seu circuito. Este minarete, o mais notavel monumento arabe, da sua classe, na peninsula, foi construido pelo celebre alchimista e architecto Géber, a quem se attribuio, sem fundamento, a invenção da algebra.
– Não olvide o leitor, que estamos no decimoquinto seculo, em que não existe ainda o Giraldillo, e por isso a torre não é conhecida pelo nome de Giralda.
Numerosa a casaria da praça; alguns edificios podem comparar-se em tudo com palacios realengos.
As mulheres prezam-se de caminhar com garbo e passo