Pero da Covilhan: Episodio Romantico do Seculo XV. Brandão Zephyrino

Pero da Covilhan: Episodio Romantico do Seculo XV - Brandão Zephyrino


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a vê-las!.. – respondeo o pagem com pronunciado acento de tristeza.

      – Pois porque não haveis de voltar?..

      – Deus o sabe; mas diz-me o coração, que nunca mais verei Sevilha!..

      – Tem cousas o vosso coração!.. Deixai-o cá, para não vos ir atormentando com presagios pelo caminho…

      As outras donzellas, que tiveram curiosidade de saber, com quem a sua companheira conversava, accorreram no momento em que Pero fazia esta pergunta á sua interlocutora:

      – Se eu podésse arrancar o coração do peito, de quem poderia confia-lo, na certeza de que ficaria bem guardado?

      – De mim! – exclamam todas a um tempo.

      – Como elle não póde repartir-se, – ponderou o pagem – entrega-lo-hia a Beatriz.

      – Sois mui gentil, Perico! – tornou esta. Graças pela preferencia…

      – Não fostes vós, quem me propôz não o levar comigo?..

      – Sem duvida!.. É, porém, essa a unica razão da vossa escolha?..

      – Não m'o pergunteis… Se tivesse aqui um alaúde, cantar-vos-ia agora ao som d'elle:

      Con dos cuidados guerreo

      que me dan pena y sospiro;

      el uno quando no os veo,

      el otro quando vos miro. 1

      – Bellissimo, Perico!.. – bradaram as donzellas com viva demonstração de alegria.

      – Que gracioso sois! – accrescentou Beatriz e perguntou: mas porque esquecestes a guitarra, que é mais maneira, e vos lembrastes do corpulento alaúde, como lhe chamava o arcipreste de Hita?

      – Vejo, que conheceis os versos de Juan Ruiz… – observou o pagem.

      – Quem haverá ahi, que os não tenha ouvido recitar aos trovadores e aos jograes?!.. A proposito vinha agora recordar aquelles, em que o arcipreste descreve a recepção de D. Amor… Se quereis ter uma igual, quando regressardes, recitai-os, Perico!..

      – Careceis dos nossos rogos?.. – atalharam as outras donzellas.

      Convem notar, que os duques de Medina Sidonia, á similhança dos reis de Castella, mantêem uma côrte poetica. Fazer versos está na moda, por isso são poetas os grandes senhores: almirantes, condestaveis, duques, marquezes, condes e reis. A verdadeira e legitima poesia conservava-se no estado latente, desde o reinado de D. Pedro, o Cruel. Passou depois á côrte, e fez-se cortezã. Com tudo não havia perdido completamente o favor popular o romance brioso e sentido.

      Os melhores poetas, que frequentam a casa Medina Sidonia, são versados na lingua arabe, e sabem numerosas lendas d'este povo de poetas. Conhecem a escola provençal, e é-lhes familiar a litteratura. Os romances castelhanos, e as mais bellas composições poeticas de Hespanha, anteriores ao presente seculo XV, todos os cavalleiros d'aquella côrte sevilhana recitam com applauso de damas e donzellas. O marquez de Santilhana, que por lá surge de quando em quando, ao passo que por todos é escutado com affectuoso enthusiasmo, estimula os moços, repetindo-lhes esta maxima: «a sciencia não embóta o ferro da lança, nem afrouxa a espada na mão do cavalleiro.»

      N'este meio social tão distincto, é que tem sido educado o pagem, e a familia Medina Sidonia dispensa-lhe os maiores carinhos.

      Tirado, pois, a terreiro pelas donzellas, assume um certo ar de gravidade, parecendo ao mesmo tempo, que do seu olhar vivissimo saltam chispas de luz e de graça, e exclama:

      – Attenção!.. Vae fallar Juan Ruiz!..

      Quando, porém, se propunha recitar o engraçado episodio, pôz termo ao animado colloquio o apparecimento do irmão do duque a uma porta da galeria inferior.

      O pagem dirigiu-se logo a D. Juan, de quem recebeu uma ordem, e em virtude d'ella saiu apressadamente do pateo. As donzellas retiraram tambem logo da galeria.

      Junto das cavallariças um velho mendigo, de compridas barbas brancas, de olhar scintillante e modos altaneiros, em que se traduz o seu orgulho de raça, inflexivel sempre, até sob o jugo do infortunio, tem feito as delicias de eguariços e lacaios, ora tocando sanfona, ora narrando historias de bandidos e de feitiços dos mouros de Granada. A famulagem tinha tempo para tudo. Não se tratava então de apparelhar ginetes, para ir no encalço dos Ponces, inimigos irreconciliaveis dos Guzman, apesar do seu proximo parentesco; unicamente cincoenta cavallos estavam arreados, e promptos a enfrear á primeira voz.

      São quasi cinco horas da tarde. D. Juan de Guzman despede-se do irmão, que lhe mostra uma carta de D. Diogo Lopes Pacheco, marquez de Vilhena, recebida momentos antes, e abraçando-o diz-lhe: «D. Affonso que conte com dois mil cavallos».

      Passados poucos minutos as donzellas da duqueza sóbem a um torreão do palacio, para vêr sair a garrida cavalgada, em que vae caminho de Portugal D. Juan de Guzman.

      Para maior luzimento do numeroso prestito de escudeiros e lacaios, com o qual D. Juan pompeava, o duque não só pôz ao seu serviço o discreto pagem, que o leitor conhece, mas deu-lhe tambem por companheiro um dos mais disértos trovadores da sua côrte.

      Ao lado dos azemeis, que conduzem possantes mulas pittorescamente ajaezadas e carregadas de bahús com a bagagem, caminham uns romeiros, encostados ao seu bordão, e com a murça da esclavinha ornada de conchas e vieiras. Por intervenção da duqueza, haviam alcançado licença de jornadear com D. Juan até Portugal, devendo d'aqui passar a Santiago de Compostella, onde se dirigem, e d'este modo evitar os caminhos de Hespanha ora tão infestados de bandidos e salteadores.

      As donzellas demoraram-se no torreão até se desfazer, lá ao largo, a ultima nuvem da poeira, que envolvia cavalleiros e peões; mas já não logravam distinguir um só d'elles.

      – Quem sabe, se Beatriz desejaria descortinar unicamente o pagem?.. Talvez. Nada, porém, communicou ás companheiras, que podésse denunciar esse desejo.

      – E Perico?.. Levaria porventura gravada no coração a imagem de Beatriz?.. Começaria a feri-lo deliciosamente o espinho da saudade?.. Ou a lembrança de entrar no seu paiz, que, desde muito creança não tornára a vêr, e em cuja côrte teria ensejo de exhibir as singulares prendas, de que era dotado, apagar-lhe-ia da memoria os venturosos dias de Sevilha?..

      Ao leitor cordato afiguram-se decerto inopportunas taes perguntas, feitas com o fundamento unico da scena, que presenceámos no pateo.

      Tem razão. Esse galanteio innocente, proprio da mocidade dos participes, dos costumes da época, e até da indole das encantadoras filhas da Andaluzia, não auctoriza a procurar mysterios no que tão natural se apresenta.

      – Sabe o leitor o que logo ao começar da jornada está provocando os gabos de experimentados escudeiros?

      – É a destreza, com que Pero, o gentil pagem, manda o rinchão fouveiro que monta. A cada galão do corcel sorri-se desdenhosamente, e com seus ditos joviaes e maliciosos é o enlevo da comitiva.

      Ditosa mocidade!..

      Se voltassemos ao palacio dos duques, encontrariamos talvez Beatriz a exercer o galante ministerio de juiza em alguma côrte de amor.

      E cá fóra veriamos o velho mendigo no mesmo lugar ainda, cantando ao som da sanfona:

      «Rosa fresca, rosa fresca,

      tan garrida y con amor;

      quando vos tuve em mis braços,

      no vos supe servir, no,

      y agora que os serviria

      no vos puedo aver no.2

      .........

      .........

      II

       CONSPIRAÇÃO

      Se o leitor tem folheado


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<p>1</p>

Canc. Gen.

<p>2</p>

Canc. Gen.