Pero da Covilhan: Episodio Romantico do Seculo XV. Brandão Zephyrino
conselho do marquez de Vilhena, Henrique IV voltou-se para D. Affonso V, a quem propôz o casamento com D. Joanna, a qual levaria em dote os reinos de Leão e Castella; porém, o monarcha portuguez, mais receoso dos artificios de Vilhena do que das difficuldades do assumpto, deo largas ao negocio, e Henrique IV entretanto tentou ainda procurar para genro o infante D. Henrique de Aragão, filho de outro, que, cincoenta annos antes, havia sido o primeiro perturbador de Castella.
Começou o anno de 1474.
Henrique IV estava em Segovia, e o alcaide d'esta cidade, Andrés de Cabrera, teve artes de fazer, com que o soberano se avistasse no alcaçar com a infanta D. Isabel. O rei, por sua natural bonhomia, recebeo a irmã, que não solicitou, nem esperou permissão para apresentar-lhe o marido. Era D. Isabel, na phrase de um legado de Sixto IV, sobradamente animosa e discreta, para deixar de conseguir o que desejasse, por isso não tratou de desculpar-se, senão de commover o irmão a ponto de lograr induzi-lo, a que no dia de Reis lhe désse e ao marido uma prova publica de affecto, indo á missa com elles, e voltando com grande comitiva ao alcaçar. Aqui tinha o alcaide farto e delicado almoço. O rei comeo com sua irmã e cunhado, e ao cair da tarde sentio-se tão mal, que foi mister leva-lo em braços para o palacio. Em quanto esteve de cama não cessaram as deligencias, para que declarasse sua irmã por herdeira do throno. Negou-se a isso constantemente. O marquez de Vilhena advogava a causa de D. Joanna, o arcebispo de Toledo a de D. Isabel; e ao passo que esta infanta se mostrava tranquilla e disposta a sustentar a todo o transe suas pretensões á successão, D. Fernando pelo contrario, não parava em parte alguma, como quem sentia na consciencia um pêso, de que não podia alliviar-se.
Depois do almoço de Segovia, Henrique IV nunca mais gozou saude, até que falleceo em 12 de dezembro do anno a que nos estamos referindo. Dois mezes antes tinha morrido o marquez de Vilhena, a quem succedeo seu filho D. Diogo, que assistio com o cardeal Mendoza, o conde de Benavente e o prior de S. Jeronymo, fr. João de Macuelo, aos ultimos momentos do rei em Madrid.
Apenas o prior confessou e ministrou a Sagrada Eucharistia ao monarcha moribundo, perguntou a este o cardeal:
– V. A. deixa testamento?
– Deixo – respondeo Henrique IV. – O meu secretario Juan de Oviedo o apresentará.
– E quem são os vossos testamenteiros? – continuou o cardeal.
– Á excepção do prior de S. Jeronymo, ficam nomeados os presentes e o conde de Plasencia.
– E a quem deixa V. A. por herdeira do throno? – insistio ainda Mendoza.
– A minha filha D. Joanna – replicou o monarcha serena e firmemente.
Seria grave offensa á memoria de Henrique IV suppôr, que na hora tremenda, em que elle se preparava, conforme a sua fé, para dar conta das suas fraquezas ao Omnipotente, saisse de seus labios uma mentira!
Ainda quentes os restos do mallogrado monarcha, D. Isabel fez-se acclamar, em Segovia, rainha de Castella e Leão, mandando celebrar um solemne Te-Deum, como se acabasse de alcançar o maior triumpho. Seguidamente foi áquelle mesmo alcaçar, onde havia entrado mezes antes em companhia de seu esposo e do rei defunto, sentou-se junto d'aquella mesa, em volta da qual os tres almoçaram, e prezenteou o alcaide Andrés de Cabrera com o mesmo copo de ouro, de que se servira D. Henrique.
Parece um sarcasmo!
Em geral os historiadores e chronistas hespanhoes defendem e exalçam a successão de Isabel a Catholica, servindo-se, para combater a legitimidade e o direito da princeza Joanna, dos mesmos pretextos, de que lançaram mão os rebeldes.
Não é d'este modo, que deve comprehender-se a missão da historia.
Póde o historiador alardear a sua erudição e os seus talentos; se o seu criterio, porém, não fôr imparcial e desapaixonado, sacrificará a verdade, que é a alma, a belleza da historia, e a honra suprema, de quem a escreve.
O facto de ter D. Fernando o Catholico, depois de viuvo, pretendido desposar-se com a princeza D. Joanna, por si só bastaria, para lavar a nodoa, com que macularam a reputação da mulher de D. Henrique.
Mas a tumida onda sediciosa não envolveu unicamente os povos de Castella; saltou a fronteira portugueza, e arrastou na resaca o nosso D. Affonso V, que no conceito de Camões,
Fôra por certo invicto cavalleiro,
Se não quizera ir ver a terra Iberica.
III
NOVO ESCUDEIRO
Após o passamento de Henrique IV, todas as esperanças dos partidarios de D. Joanna firmavam-se no heróe de Arzilla; e as de D. Isabel no apoio de Aragão principalmente. Estava préstes a travar-se a lucta, em que devia afinal decidir-se da sorte das duas contendoras, collocadas em circumstancias mui diversas.
Isabel, ainda em vida de seu irmão, soube preparar-se a tempo; Joanna era uma creança inexperiente, filha de uma senhora sem prestigio, e sem a necessaria energia para collocar-se á frente do movimento, que se operava a favor da justa causa da princeza de Castella.
Tambem a morte veiu surprehender a infeliz viuva no inicio das hostilidades, de sorte que sua filha, orphã prematura de páe e mãe, ficou inteiramente á mercê da versatilidade caracteristica de seus parciaes. Estes, mais por acudir á vingança de seus odios particulares, e ao accrescentamento de seus patrimonios, do que por zelo do bem publico, ou amor de justiça, trataram de comprometter D. Affonso V, para lhes saciar a cobiça.
Estava o rei de Portugal em Extremoz, quando lhe chegou ás mãos o testamento, em que seu cunhado Henrique IV declarava ser a princeza D. Joanna sua filha, e a nomeava herdeira dos reinos de Castella e Leão, pedindo outrosim a D. Affonso V, que acceitasse a governança d'elles e casasse com a sobrinha.
Ouviu D. Affonso sobre o assumpto o parecer de seu filho, bem como o dos grandes e principaes do reino, a quem consultou mais talvez pelo respeito ás praxes estabelecidas, do que resolvido a seguir qualquer conselho, que contrariasse o seu reservado intento. A fim de saber não só quantos e quaes eram os magnates castelhanos legitimistas, como de certificar-se da valia d'elles, enviou a Castella Lopo de Albuquerque, seu camareiro-mór, depois conde de Penamacor.
A esse tempo chegava D. Juan de Guzman a Extremoz, onde foi recebido pelo monarcha.
Não podia ser mais a proposito esta visita, e D. Affonso folgou muito com ella, dando ao seu hospede cordialissimo agasalho, como naturalmente pediam a lhaneza e affabilidade do rei, que captivava com o seu trato grandes e pequenos.
Entregou-lhe o recem-vindo uma carta, em que o duque de Medina Sidonia o apresentava a D. Affonso, garantindo a approvação antecipada a quanto entre ambos ficasse assentado.
Terminada a leitura do escripto, começou Guzman por dizer:
– Não ignora voss'alteza, quanto é lastimoso o estado de Castella. O reino sem direcção, nem governo, combatido por todos os principios de dissolução, caminha rapidamente para uma ruina tremenda, e nas mãos de voss'alteza está o poder evita-la.
– São esses os meus desejos; – replicou D. Affonso – mas, como sabeis, a empresa não é facil, por isso careço de inteirar-me da lealdade dos que se propõem pugnar pela justiça e direitos da princeza, minha sobrinha.
– Da parte de meu irmão – tornou Guzman – venho eu prestar homenagem a voss'alteza, a quem elle jura servir em tudo, obrigando-se a auxiliar, tomar e reconhecer por seu legitimo rei e Senhor, se voss'alteza se desposar com a senhora D. Joanna, e fôr sem demora tomar posse do governo de Castella.
– O duque é digno dos meus louvores, e mais ainda pela fórma, como procede, offerecendo-me occasião de conhecer-vos, para muito vos estimar.
– Mercê a voss'alteza, meu Senhor. Em breve poderei talvez provar-vos a gratidão do meu animo, onde tambem o seu esforço mais se manifeste.
– Praz-me ouvir-vos, e ver-vos tão deliberado!
D. Juan de Guzman cortejou D. Affonso, e disse-lhe com