O Regicida. Castelo Branco Camilo

O Regicida - Castelo Branco Camilo


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o Branco

      O Regicida

      ADVERTENCIA

      A urdidura d'este romance, que afoitamente denominamos historico, deu-no'l-a um manuscripto, que pertenceu á livraria do secretario de estado Fernando Luiz Pereira de Sousa Barradas.

      O collector d'estes apontamentos, que a historia impressa, respeitando as conveniencias, omittiu, foi contemporaneo dos successos que archivou, pois escrevia em 1648.

      De lavra nossa, n'este romance, ha apenas os episodios, que me sahiram ajustados e congruentes com os traços essenciaes da narrativa.

      O REGICIDA

      I

      Antonio Leite, casado com Maria Pereira, e morador na villa de Guimarães, em 1634, era o cuteleiro de maior voga em Portugal.

      N'aquelle anno, tinham um filho, de nome Domingos, com dezesete annos de edade.

      Quizera o pai ensinar-lhe a arte, que lhe dera fama e dinheiro. A mãe desejava que o rapaz fosse frade, consoante á vontade de seu irmão fr. Gaspar de Sancta Thereza, leitor apostolico de moral no convento de S. Francisco de Lisboa.

      Ora o rapaz não queria ser frade nem cuteleiro: aspirava ardentemente um officio mais prestadio ao genero humano infermiço: queria ser boticario.

      Era esperto o moço, não só porque appetecia ser boticario; mas porque realmente era agudo de intendimento, ladino, sedento de saber tudo e propenso a correr mundo, tendencia, na verdade, incompativel com a quietação da almejada botica.

      Aos quinze annos, Domingos sabia latim, cursava philosophia de Aristoteles com um insigne mestre da ordem franciscana, e lia os cartapacios pharmaceuticos do frade boticario do mesmo convento.

      Participou Maria a seu irmão fr. Gaspar a inclinação do filho. Respondeu o prudentissimo tio que lhe não torcessem a vocação, por quanto em todos os misteres podia um bom christão servir o proximo e ganhar o ceo. E, em prova do seu applauso, mandou ir o sobrinho para Lisboa, afim de lhe arranjar mestre que o exercitasse e approvasse.

      Foi Domingos Leite para a capital, e entrou como praticante na botica do Hospital Real, sob direcção de Estevão de Lima, o primeiro mestre de pharmacia entre os quarenta e trez boticarios de Lisboa.

      Ao cabo do primeiro anno, o professor não tinha que lhe ensinar. Domingos intendia e aviava as receitas com rara destreza. A estatistica mortuaria, se não tinha diminuido, tambem não tinha augmentado. Todavia, o habil praticante mostrava-se descontente d'aquelle genero de vida, e de si comsigo resolvera encarreirar-se para outro destino mais adquado a umas vaidades do mundo que lhe estonteavam a cabeça de mistura com o cheiro nauseativo das drogas moídas no gral.

      Frequentava a famosa botica Luiz das Povoas, provedor da alfandega, que se comprazia de conversar com Domingos Leite em coisas de lettras, mormente poetas latinos. O rapaz revelou ao provedor o seu desgosto da botica, e rogou-lhe que o empregasse na alfandega. Vê-se que já em 1636 os bons talentos portuguezes, as aguias do genio, pairavam sobre as prêas alfandegueiras, como hoje em dia succede com tanto litterato que prefere á gloria de rimar ao ar livre a athmosphera aziumada dos armazens, e o fartum engulhoso da matullagem.

      De feito, Luiz das Povoas accedeu á petição de Domingos Leite, nomeando-o escrivão das «Fructas» com 40:000 reis annuaes de ordenado.

      Volvido um anno, o escrivão das fructas confessou ao provedor que a sua vocação definida não era bem a alfandega; que semelhante vida lhe desagradava por monotona; que o seu espirito precisava de repasto mais poetico; em fim, que se sentia alli embrutecer com trabalhos em que a intelligencia andava grávida de cifras e cifrões, coisas indigestas para quem scismava em trechos de Virgilio ou estancias de Camões, quando a penna alinhavava a um tendeiro da rua de Quebra-Costas a conta dos direitos da alfarroba ou do cacáo.

      –Que queres tu ser então, Domingos Leite?—perguntou-lhe o bom amigo.

      –Estou gostando arrebatadamente da muzica, desde que vossa mercê me levou ás festas da capella real. Se eu podesse arranjar o emprego de môço da capella…

      –Achas isso bom? Poucas ambições tens, rapaz!

      –O que mais me encanta é o viver com os meus poetas, e ter alli á mão as delicias da musica. O ordenado é pequeno; mas setenta cruzados chegam e sobram. Lá ao diante, se eu grangear cabedal de saber para dar a lume algumas ideias que me cá refervem nos miólos, então darei gloria ao meu nome. Quanto a bens de fortuna, lá está meu pai na officina a ganhar-me o patrimonio. Sou filho unico, e com pouco heide ir onde vão os grandes.

      –Olha tu que os grandes não começaram por môços da capella real…

      –Bem sei; mas eu, quando desprender as azas, voarei do zimborio da capella, e irei poisar nas grimpas dos palacios.

      –Vê lá se te aguentas no vôo, meu Icaro!—redarguiu o provedor—Cuidado comtigo que não tenhas de voltar á botica a manipular aquella herva bicha e o pastel de carne de gato com que me curaste das almorreimas…

      –Não tenha medo, sr. Luiz das Povoas. Os homens da minha tempera tem fados esquisitos! Eu, ás vezes, sinto uns deslumbramentos que me cegam! Se eu não fosse filho de meu pai cuteleiro, e pudesse desconfiar da honestidade de minha mãe, havia de crer que o meu sangue girou já nas veias dos duques de Guimarães!

      –Serás tu filho do real Encoberto D. Sebastião que se espera? Toma tento, Domingos, que não te fermente no miôlo a parvoice do rei da Ericeira ou do rei de Penamacor, ou do pasteleiro do Escurial…—volveu casquinando o provedor da alfandega—Vê lá se contendes com o sr. D. João, duque de Bragança, a ver qual dos dois é o Encoberto das profecias do Preto ou do Caldeirão, astrologo de Cascaes!… Emfim, rapaz dos meus peccados, eu fallarei ao sr. Miguel de Vasconcellos, e tu serás nomeado môço da capella real com setenta cruzados; e, depois, quando te sentires com voadoiros de servir, ála-te do zimborio da capella; mas guarda-te de avoares com azas de páo dadas por algum cioso dos que seguem as damas da princeza Margarida a ouvir as antigas cançonetas do Guerreiro, os motetes do duque de Bragança, e os tonadilhos de Diogo de Alvarado. (Nota 1.ª) Ora queira Deus!… És bem apessoado; tens-me uns requebros de poeta galan; lês muito pelo livro das Saudades de Bernardim Ribeiro, que os moços do monte de el-rei D. Manuel mataram a tiro na Rua Nova. (Nota 2.ª) Não vás tu pensar que o amor dá azas, e que o tracto com as Camenas te habilita a ser ruysenhor do paço!…

      –A boa fortuna—replicou enfaticamente o moço—hade dar-m'a o engenho e a arte…

      –Se a tanto me ajudar, disse o Camões, e a nada o ajudou, nem sequer a envisgar de raiz o coração d'aquella dama da rainha D. Catharina!.. Chamavam-lhe a Bocca-negra da alcunha da mãe; mas meu pai, que a viu no mesmo dia em que o poeta a encontrou na egreja das Chagas, n'uma sexta feira da Paixão, em 20 de abril de 1542, disse-me que a menina era tão esbelta como trêda. Que farte a cantou o poeta com diversos nomes; até que ella, norteando o coração a mais substanciosos amores, tractou cazamento com outro e finou-se antes de realisar o intento. Á conta d'esta ingrata quatro vezes foi desterrado o nosso Homero. Primeiro, de Coimbra, onde estava a corte, para Lisboa. Veio a corte para Lisboa, desterraram-no para Santarem; depois para Africa, e por derradeiro para a India, d'onde voltou á mercê d'alguns passageiros. (Nota 3.ª)

      Não são de mais estes exemplos referidos a um galan de Guimarães que vai implumar as azas debaixo dos tectos reaes da vice-rainha duqueza de Mantua para depois voar…

      –Sei todas essas historias, sr. provedor—atalhou Domingos Leite.—E sei outras muitas de egual moralidade, como a do poeta Jorge da Silva, que expiou no Limoeiro os seus amores a uma irmã de D. João III; e tambem sei que D. João da Silva, por malogrado amor á imperatriz Leonor, filha de D. Affonso V, se fez frade franciscano, chamou-se o Beato Amadeu, e disciplinou as rebeldes carnes, lembrando-se sempre do paço como S. Jeronimo se lembrava das virgens de Roma nos areaes do Mar Morto. Não ignoro que D. Affonso V mandou degolar um Duarte de Souza que visitava fóra de horas uma das suas criadas. Sei, finalmente, o que custam sereyas da côrte, desde que D. João I mandou queimar no Rocio o seu camareiro Fernando Affonso, por que


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