O Regicida. Castelo Branco Camilo
conselho de estado e despacho. O marquez, indo semanalmente á côrte, levava comsigo no coche o seu secretario: e bem que o deixasse na sala da espera, algumas vezes o rei admittiu ao gabinete de despacho o diserto moço folgando de o ouvir remedar alguns bassos e tiples da capella real da princeza Margarida. É notorio que D. João IV foi muito caroavel de musica; e, sendo analphabeto em quasi tudo, publicou em 1649 uma Defesa da musica em lingua castelhana, para dar bom exemplo de patriotismo aos escriptores coevos. (Nota 6.ª) Concorriam em Domingos Leite Pereira predicados bastantes a distinguirem-no. As meninas cazadoiras viam o rapaz de vinte trez annos, esbelto, valoroso, bemquisto dos fidalgos, estimado de el-rei. Os paes d'estas meninas viam o escrivão da correição do civel, o secretario do conselheiro de estado, o mancebo fadado para coisas grandes.
Nem sequer uma leve mancha de judeu, mulato, ou mouro na candidez de tantos meritos! nem fama publica de vicios, em epoca tão eivada da corrupção da mocidade! Bastava a honrar-lhe os creditos de bom christão ser elle sobrinho de fr. Gaspar de Sancta Thereza, já prior de franciscanos, e tão bom patriota que havia sido elle o primeiro que déra a ideia de despregar o braço de Jezus crucificado afim de persuadir ao povo revolto no 1.º de dezembro que a imagem do Redemptor desencravára a mão da haste da cruz para abençoar o povo que lhe estendia os devotos braços banhados de sangue!
O manuscripto que vai architectando este livro, ao entrar no periodo amoroso de Domingos Leite, diz singelamente: «sahiram-lhe muitos cazamentos.» E, nomeando algumas noivas de nascimento illustre, repára e nota que o escrivão do civel se esquivasse a aparentar-se com familias primaciaes regeitando a neta de um bispo do Funchal, que era muito parenta da casa de Bragança e descendente de reis. (Nota 7.ª)
Passava então por ser uma das mais lindas mulheres da classe media, em Lisboa, Maria Isabel, filha de um ricasso da rua dos Tanoeiros, João Bernardes, de alcunha o Traga-malhas. Aos quinze annos era a moça tão tentadora, os fidalgos tão tentadiços, e a honra das familias tão menosprezada, que a mãe de Maria Izabel fez voto ao sancto Antonio de fr. Bartholomeu dos Martyres accender-lhe luz toda a noute para que lhe vigiasse a filha emquanto ella fosse solteira: tamanha era a falta de illuminação e policia na rua dos Tanoeiros em 1639! (Nota 8.ª)
Como era filha unica e seus pais contavam bons vinte mil cruzados em moeda, Maria teve mestre de escripta em casa—um padre de boa fama, do qual ao diante daremos ampla e funesta noticia. Formosa, rica e esclarecida, por consequencia um optimo cazamento para filho segundo de caza illustre, e o mais que podia ambicionar Domingos Leite.
Foi o tio fr. Gaspar quem lhe fallou o cazamento, por ser muito da familia Traga-malhas, e director espiritual da mãe da noiva.
Maria, ao principio, balbuciava respostas evasivas a respeito de cazar-se; porém, quando viu Domingos Leite, e o ouviu dizer-lhe umas palavras tão candidas que mais o pareciam pelo que o rosto respiráva de amorosa brandura, decidiu-se apaixonadamente.
No entretanto, quando tudo era alegria na familia, Maria Isabel escondia-se a chorar, e fazia promessas valiosas ao sancto Antonio do sabido nicho em troca de um milagre de costa acima. Lá ao diante, formará o leitor conceito da natureza do milagre solicitado, e então verá que tal era elle que o sancto, se o não fez, foi por que realmente não pôde.
O escrivão do civel da corte recebeu os emboras dos amigos mais ou menos invejosos, quando annunciou o seu noivado com a filha do Traga-malhas; e redobrou a inveja das congratulações ao saber-se que o rico tanoeiro dotára a filha com dez mil cruzados. Ora para aproximadamente computarmos o valor de dez mil cruzados n'aquelle anno de 1642, basta saber-se que, no anno anterior, o mais opulento negociante de Lisboa, Pedro de Baeça, thesoureiro da alfandega, condemnado á morte em supplicios atrozes, como cumplice na conjuração de alguns fidalgos contra D. João IV, offereceu em troca da vida a enorme quantia de trinta mil cruzados!
Domingos Leite Pereira foi presenteado com rica baixela de prata pelo rei, quando alfaiava a sua casa no sitio chamado o Salvador. O marquez de Gouvêa assistiu como padrinho do cazamento, e o prelado franciscano deu a benção nupcial aos conjuges, e uma preciosa gargantilha de diamantes á esposada, por ordem de sua irmã, e de seu cunhado, pais do desposado.
Principiou na alcôva conjugal, quando os anjos do amor e da ventura deviam vedar os umbraes d'ella á tristeza e á desgraça, uma secretissima lucta de desconfiança e lagrimas, de invectivas affrontosas e juramentos de mãos erguidas. Quem diria que, áquella hora alta da noite, uma formosa mulher, com as tranças desatadas em serpentes pelas espaduas convulsas, ajoelhava aos pés do marido, e, lavada em lagrimas, soluçava:
–Eu te juro que nunca amei outro homem! Não intendo as perguntas que me fazes! Fui creada no regaço de minha mãe! Nunca sahi de casa senão para a igreja, e sempre com minha mãe! Os homens que para mim olhavam uma vez não me tornavam a ver… Não me perguntes se amei alguem n'este mundo, que mettes a tua alma no inferno, e me dás vontade de me ir afogar no Tejo com a minha vergonha!..
Já se vai vendo que o padre Sancto Antonio do nicho assistia de longe e neutral a este lance.
A luz do dia seguinte não alvorejou na alma entenebrecida de Domingos Leite Pereira. Apenas rompeu a manhã, o noivo sahiu do thalamo como de um cavalete de tractos, e foi em direitura procurar o seu antigo mestre de pharmacia Estevão de Lima. Admittido á escrevaninha do matutino boticario do Hospital real, revelou no rosto livido o febril anceio de intender as anomalias possiveis na estructura do corpo humano. Disse elle ao sabio em poucas e tartamudas palavras a ignorancia que o atormentava.
Estevão de Lima ouviu-o cabeceando, baixou os oculos da testa sobre o promontorio do nariz, ergueu-se silencioso, abeirou-se das altas estantes dos seus livros, e tirou as seguintes obras de medicina, que ia sacudindo da poeira, e atirando para sobre a banca: Amatus Lusitanus (ou João Rodrigues de Castello Branco) Abraham Nehemias, Thomaz Rodrigues da Veiga, Antonio Luiz, João Valverde, Garcia Lopes, Averroes, Affonso Rodrigues de Guevara.
Quando desempoava o ultimo, affirmou o douto boticario:
–Este physico é chavão na materia, se bem me recordo.
E, percorrendo a lista alphabetica das coisas notaveis, poz o dedo infallivel na questão subjeita, e disse ao offegante interlocutor:
–Veja isso a paginas 488, columna 1.ª
O contheudo da columna 1.ª da pagina 488 da obra admiravel, chamada De re anatomica, não se reproduz, em respeito ás damas que se dispensam de saber anatomia, apezar da senhora Deraisme, certa adversaria conspicua de Dumas, para a qual o saber sciencias da organisação humana é coisa util ás damas maridadas.
Qualquer que fosse, porém, o contexto da pagina consoladora, é certo que na face de Domingos Leite transpareceu a claridade da interior alegria, e tanto era o desafogo, e desoppresso o respirar do moço, que se abraçou no seu antigo mestre, exclamando:
–Vossa mercê apagou-me o inferno da alma, e tirou-me da mão o ferro uxoricida!
–Ó mentecapto!—volveu Estevão de Lima—Quem querias tu matar?!
–Ella que me infamára aos olhos do homem que m'a atirou aos braços com uma gargalhada!
–Sobre infamado, matador!—acudiu Estevão—Ruim philosopho és, Domingos Leite! Se o meu auctor Guevara te não defendesse a esposa com o escudo da phisica, ainda assim deveras christã e honradamente desligar de ti a mulher indigna, e salvar tua honra interpondo o juizo do mundo como juiz na tua causa. A sentenciada seria ella; e tu, se fosses lastimado, não perderias com isso o direito á veneração dos homens de bem.
–Excellentes rasões…—atalhou Domingos Leite;—mas, sr. Estevão, se eu um dia fôr enganado, não me dê essas nem outras melhores, que eu não lh'as escutarei…
Discorreram sobre o assumpto breve espaço, porque Domingos Leite anciava reconciliar-se com a esposa, pedir-lhe perdão da injuria, indemnisal-a das perguntas ultrajantes com affagos de noivo apaixonado e repêzo da injustiça.
Maravilhou-se Maria Isabel, quando o esposo entrou alegre, e a surpresou enfardelando