O Regicida. Castelo Branco Camilo

O Regicida - Castelo Branco Camilo


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que intento?

      –De me voltar a caza de meu pai.

      –Fugindo?

      –Fugindo, não; livrando-te da mulher innocente que tu cobriste de affrontamentos.

      Demudou-se-lhe o semblante em ares supplicantes, e dobraram-se-lhe os joelhos aos pés da esposa illibada pela pagina 488, columna 1.ª, do livro De re anatomica do physico thaumathurgo Affonso Rodrigues de Guevára.

      –Perdoas-me?—balbuciou Domingos Leite, ungindo-lhe a cara de lagrimas.

      E ella, que ainda tinha pudor na consciencia, sentiu embargar-se-lhe na garganta a palavra que perdoava, e ajoelhou tambem apertando-o freneticamente ao coração.

      Amaram-se em redobro desde aquelle momento: elle porque offendera uma innocente; ella… porque o sancto Antoninho do nicho lhe fizera afinal o milagre. «E, se não era milagre, diria ella comsigo, onde foi meu marido desfazer as suas suspeitas? quem o despersuadiu?»

      Nós é que sabemos como foi.

      IV

      Em alegre paz derivaram dois annos.

      Ao fim do primeiro, deu ao amor de seu marido Maria Isabel uma menina.

      Pouco depois, duplicou-se a riqueza do cazal com o falecimento do Traga-Malhas, e a entrada da viuva n'um Recolhimento da Terceira ordem de S. Francisco.

      Não obstante, a felicidade do antigo aprendiz de boticario era dardejada pela inveja disfarçada no epigramma.

      Quando Maria Isabel apparecia nas festividades de igreja, egualando-se nas pompas ás mais ricas fidalgas, rumorejavam-se facecias que eram victoriadas com frouxos de riso.

      A corrupção da epoca vestia-se de gala nas mulheres, Maria Isabel, porque sabia que as fidalgas a remoqueavam, de dia para dia dava novo pasto á satyra. Arrastava saias golpeadas de mosqueta; corpetes recamados de oiro; chapins estrellados de prata e perolas; fraldelhins agrinaldados de rubis. Sahia em liteira sua, das mais adamascadas e pintadas, com lacaios bizarramente vestidos.

      E, por sobre tudo isto, realçava como engodo ao despeito aquella esplendorosa beldade de Maria Isabel, a quem as senhoras dos palacios, arruinados como a honra propria, chamavam a Traga-malhas tanoeira.

      N'este em meio, Domingos Leite Pereira, advertido pelo marquez de Gouveia que posesse côbro ao luxo da mulher, respondeu que era bastantemente rico…

      –E bastantemente inepto, sr. Leite—acudiu o mordomo-mór—Quando um marido assim arreia sua mulher para a exhibir nos adros das igrejas, os outros podem suspeitar que elle a veste, á guiza de moira da procissão, para a mostrar bem adubada e apetitosa á cupidez dos outros.

      –Se o sr. marquez pensasse como esses vilãos que assim pensam, eu sahiria da sua casa, com a magua de o não poder reptar ao baixo ponto em que está a honra dos plebeus—replicou Domingos Leite com altivez.

      –Eu não penso assim—obviou o fidalgo—mas sei como os outros pensam.

      –Quem são os outros? diz-m'o V. Ex.ª?

      –Não denuncio, sr. Leite; advirto-o e mais nada. Vossa mercê conhece os livros; mas desconhece os homens. Tem grandes espiritos; mas possue imperfeitissima rasão. Guarde isto que lhe digo; e oxalá que eu nunca lh'o recorde.

      –Sr. marquez!—volveu o secretario com vehemente arrebatamento—se minha mulher não é a honesta esposa que eu creio, diga-m'o; peço a V. Ex.ª pela sorte de suas filhas!

      –Nada sei…—balbuciou o marquez, refreando a perturbação.

      –V. Ex.ª está indeciso!—sobreveio Domingos Leite agitadissimo.

      –Não seja louco!—objectou o velho, refazendo-se de apparente serenidade—Nada sei de sua mulher que o desdoure.

      E, rematando o dialogo, o mordomo-mór disse que el-rei o esperava para o despacho.

      Esta acerba palestra instillou peçonha no coração de Domingos Leite.

      Havia um só homem e esse o mais indigno de todos com quem o marido de Maria Isabel desafogava a plenos pulmões: era Roque da Cunha, que, ao tempo, exercia um officio dos mais grados entre os aguasis de uma das corregedorias criminaes da corte, em recompensa de haver testemunhado em 1641 contra o general Mathias de Albuquerque, por industria e compra dos inimigos d'aquelle insigne cabo de guerra. E, bem que Mathias de Albuquerque provasse sua innocencia, D. João IV, tão presador dos denunciantes como dos bons e fieis generaes, não retirou a Roque da Cunha a paga da aleivosia. Parece que antevira a urgente necessidade d'aquelle homem…

      Abriu sua alma Domingos Leite ao assassino de Pedro Barbosa, referindo-lhe o que passara com o marquez de Gouvêa, e terminando por lhe perguntar se ouvira qualquer calumnia contra a honestidade de sua mulher.

      –Ouvi, respondeu friamente Roque.

      –O que?! acudiu o outro sobresaltado e livido.

      –Ouvi que antes de ser tua mulher tivera outros amores.

      –Com quem? bradou arquejante Domingos Leite.

      –Não perguntei. O calumniador disse a calumnia, e adormeceu na rua dos Romulares com dois bofetões puxados á sustancia, que lhe dei nos indignos focinhos.

      –Nunca m'o disseste…

      –Não sou echo de calumniadores, amigo Leite. Encarecer-te a minha amisade com a noticia dos bofetões, seria dar importancia a bagatellas. Se eu estivesse em sitio onde podesse arrancar-lhe a lingua, mandava-t'a embrulhada em uma folha de alface com a mesma facilidade com que t'o digo.

      –Mas conheces esse homem?

      –Conheci ha muitos annos: era parente de um official, ou quem quer que fosse de Miguel de Vasconcellos. Não lhe sei o nome, nem o tornei a ver desde ha dois annos. Morreria elle?… Se o matei com o primeiro murro, era escusado pregar-lhe o segundo…

      Esta revelação attribulou Domingos Leite por tanta maneira, que Roque da Cunha chacoteava a irracional afflicção do seu amigo, chegando a dizer-lhe brutalmente:

      –Homem! se este caso te faz tamanha mossa, parece que estás mais inclinado do que eu a acreditar a calumnia do tal que eu esmurracei! Em fim, tu lá sabes… concluiu faceiramente.

      –Deixa-me… Olha que me estás fazendo perder a razão! atalhou o desvairado moço. Vê se me encontras esse homem, Roque! Pede-t'o a minha honra! dou-te por esse homem metade do que tenho! Se o tu não achares, ninguem o achará… Olha que me salvas, se m'o trazes! salvas o teu maior amigo!

      –Irei procural-o no inferno, se o não achar cá em cimo. Confia nos quadrilheiros de todos os bairros de Lisboa. Saibamos: que queres tu do homem?

      –O nome do amante que teve Maria Isabel antes de ser minha mulher.

      –Então é coisa averiguada que teve? interpellou despejada, mas rasoavelmente o cynico.

      –Perguntas-m'o!… balbuciou Leite Pereira.

      –Não t'o pergunto: és tu que m'o dizes, homem! Seja como for. Apparecendo vivo o sujeito, queres interrogal-o, ou fias de mim desembuchar-lhe tudo que elle souber?

      –Fio de ti a minha honra, que ha de sahir limpa d'essa prova, ou hei de lavar o ferrete com o sangue de alguem.

      –Até mais ver, Domingos Leite. Dá-me tres dias e tres noutes. D'aqui até lá não tujas palavra que possa espantar a caça, percebes? Olha que as mulheres tem faro de tres narizes, quando não podem apresentar folha corrida ao almotacé do bairro da virtude.

      Nos dias subsequentes, o secretario do marquez de Gouvêa, pretextando extraordinarios trabalhos, apenas pernoitava em casa; e, apesar de esforçada dissimulação, denunciou a Maria Isabel torvado animo e sobresaltos no dormitar. Interrogava-o ella amorosamente e com uns abalos de susto. Elle attribuia o seu dessocego a receios da causa da patria, visto que o exercito do Alemtejo soffria numerosas deserções, e perigava á mingua de generaes. No entanto, a esposa decifrara desgraça eminente em umas lagrimas que lhe vira toldar os olhos fitos no rosto angelico da filhinha adormecida.


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