Carlota Angela. Castelo Branco Camilo

Carlota Angela - Castelo Branco Camilo


Скачать книгу
da mudança inesperada, Norberto e Rosalia, todos os dias, diziam ao homem dos oculos:

      –Vê como se enganou? Ahi a tem agora mais ajuizada e mansa que as meninas creadas debaixo da disciplina e da palmatoria…

      –Veremos…—redarguiu o velho advogado—veremos quando ella tiver uma vontade opposta á vossa qual das duas é a que vence.

      –Vontade opposta á nossa!—replicava Norberto—Isso havia de ter que ver! Como acha o mano que ella se possa oppor á nossa vontade?

      –Facilmente; e para não ir mais longe, ides vós ter uma occasião de a experimentar.

      –Qual?—atalharam ambos.

      –Eu vos digo; mas, se Carlota entrar emquanto eu fallo d'ella, fica para ámanhã o que hoje vos não disser.

      –Carlota está no seu quarto a ler, e não vem cá tão cêdo—disse Rosalia.—Podes fallar á vontade, Joaquim.

      –Quando me notastes a mudança rapida de Carlota, fiquei mais admirado que vós. Entrei a scismar até que ponto se podia aceitar a naturalidade da transfiguração moral, e vim a suspeitar que a causa estava na natureza, mas fóra da natureza de Carlota. Ora, eu sei mais do mundo que vós, haveis de conceder-me isto, e vós tendes mais boa fé que eu: fica uma cousa pela outra, e acho que a vossa é bem mais agradavel á vida que a minha.

      Sabeis o que me lembrou? Se Carlota estaria namorada.

      –Olha que lembrança!—atalhou D. Rosalia.

      –Essa é das suas, doutor!—disse Norberto—Está a sonhar… deixe-se d'isso.

      –Seria sonho;—disse o doutor severamente—mas já ágora deixem-me contar o sonho até ao fim, e guardem para o remate as admirações. N'esta suspeita, comecei a limpar os oculos para examinar as caras masculinas que entravam aqui, e não achei alguma duvidosa. As vossas relações são pouquissimas, e n'essas não ha alguem que possa despertar no coração de Carlota um sentimento novo. Continuei as minhas averiguações fóra de casa. Fui ás poucas casas onde vós ieis; segui todos os olhares de Carlota, e achei-os sempre indistinctos e indifferentes. Descorçoei um pouco; mas não desisti.

      Um dia do anno passado, estavamos nós no Candal, e passeiava eu e ella sósinhos na estrada. Dizia-me a pequena que tinha lido umas novellas de cavallarias, de que gostara muito, posto que não acreditasse nas historias. Contou-me algumas passagens de Paulo e Virginia e de Menandro e Laurentina ou os amantes extremosos, que vós não sabeis o que é, mas lembrados estareis de me perguntardes se eram livros de boa moral. Notei que a moça, quando me fallava no amor das damas e cavalleiros, empregava mais vivacidade do que convinha a uma menina innocente de sentimentos amorosos. Fiz-lhe algumas perguntas com intenção de a surprender; mas ella jogava commigo tão habilmente, que venceria a partida, se eu não tivesse cincoenta e cinco annos, e não tirasse da habil escapula o mesmo que tiraria, se ella se deixase apanhar.

      N'outro dia estavamos nós sentados no mirante, conversando em cousas que me não lembram, e vimos apparecer no alto da estrada um cavalleiro. Olhei casualmente para Carlota, e vi-a córada, e inquieta. Disfarcei o reparo, e vi-a erguer-se e voltar as costas para o cavalleiro, dando alguns passos com certo ar de indifferença, e tornou logo, girando entre os dedos uma flor que cortara.

      O cavalleiro passou e cortejou-me: era meu conhecido. Esperei que ella me perguntasse quem era; nem uma palavra. Perguntei se o conhecia, ergueu os hombros, e fez com os beiços um gesto, que parecia dizer: «não sei, nem me importa saber».

      N'outro dia, fui eu ao Candal, e no alto das Regadas ouvi tropel de cavallo, que me seguia, subindo a calçada. Escondi-me na esquina de uma travessa, e vi passar o cavalleiro: era o mesmo da cortezia. Fui-o seguindo de longe; e, ao chegar á collina d'onde se avista o mirante, vi, primeiro, Carlota debruçada sobre o parapeito da varanda, e, depois, o cavalleiro parado debaixo do mirante.

      –Credo!—exclamou D. Rosalia, erguendo-se branca como cêra.

      –E esteve até agora calado com isso!—disse Norberto, erguendo-se tambem.

      –Nada de espantos!—respondeu o bacharel, sem se descompor na cadeira, onde se refestellava, fallando com a sua costumada solemnidade oratoria.—Logo se diz quem é o homem; mas ha de aqui fazer-se o que eu aconselhar, senão desconfio muito que minha irmã experimente mais cêdo do que espera a vontade de Carlota.

      Escondi-me alguns segundos, e appareci no momento em que vossa filha entregava um ramo ao cavalleiro.

      Ella deu fé de mim, e sumiu-se; e elle seguiu a estrada, depois que me viu. Carlota recebeu-me com a certeza de que eu era sufficientemente cego para a não ter visto: não deu o menor indicio de susto. Convidei-a, como sempre, a passeiar no jardim, e disse-lhe: «Quando houver alguma novidade na tua vida, has de contar-m'a, menina. Se ella te parecer tão agradavel, que a queiras só para ti, não cuides que lhe diminues o valor, dizendo-m'a. O coração de teu tio ha de sentir o bem do que for bom para o teu. Ora, conversemos: diz-me lá, Carlota, se sentes alguma inclinação que não sentias ha um anno, quando os meus oculos e o meu chinó eram o teu regalo.

      –Eu não, meu tio… sinto o que sentia—respondeu ella; mas a innocencia protestou contra a mentira, mostrando-se no rosto: córou e gaguejou de um modo que me fez pena e contentamento. Quando assim se córa, o coração está puro.

      Para acudir á vossa impaciencia, dir-vos-hei, em resumo, que obriguei suavemente Carlota a confessar-me que amava Francisco Salter de Mendonça.

      Já sabeis quem é.

      –Eu não!—disse D. Rosalia. E voltando-se para o marido:—E tu?

      –Conheço de vista,—respondeu Norberto—é um militar, creio eu…

      –Francisco Salter de Mendonça—continuou o doutor Joaquim Antonio de Sampayo, sorvendo uma pitada pela venta direita, e comprimindo a outra com o dedo indicador da mão esquerda—é um tenente da brigada real de marinha, é natural de Lisboa, e está aqui ha dois annos a bordo do brigue Audaz. É um moço que vive do seu soldo, e está por ahi relacionado com os rapazes nobres da cidade. É o que posso informar ácerca de Mendonça.

      Agora vou responder á pergunta de Norberto. Admirou-se de eu estar calado com isto? Calei-me, porque receiava muito que alguma imprudencia vossa irritasse o amor de Carlota. Calei-me, esperando que Mendonça fosse chamado a Lisboa, e nos deixasse o campo livre para despersuadirmos Carlota. Ainda assim, fiz tenção de vos avisar, logo que julgasse necessario empregar medidas promptas. Eu sei que o rapaz tenciona vir pedir-vos Carlota, e sei tambem que em poder de um meu collega está um requerimento d'ella para ser tirada por justiça no caso de que negueis o vosso consentimento.

      –Santo nome de Deus! valha-me nossa Senhora!—exclamou, com as mãos na cabeça, D. Rosalia, emquanto seu marido resfolegava arquejante, passeiando acceleradamente na sala.

      –Não comecem a fazer doudices!—tornou o doutor—Se gritam, se põem fogo de mais ao pucaro, entorna-se tudo. Aqui ha de fazer-se o que eu disser; mas mudemos de conversa, que ahi vem Carlota.

      II

      Os tigres são menos sanhudos contra o homem que o proprio homem.

Phocion. (Instrucção a Aristias.)

      Les parents en effet ont cela de admirable, et je parle des meilleurs, que vous ne pourrez jamais, ni par plainte, ni par raison, leur faire comprendre qu'il vient un moment où l'oiseau essaie ses ailes et quitte son nid; qu'ils n'ont d'autre mission que de faire et d'elever leur petits jusqu'á l'âge où ils quittent le nid.

Alphonse Karr. (Sous les Tilleuls.)

      Quaes fossem os conselhos do ornamento dos auditorios portuenses, teremos occasião de avalial-o opportunamente.

      Oito dias depois de planisada a conspiração contra os amores reservados de Carlota Angela, foi procurado Norberto de Meirelles pelo tenente de marinha.

      Francisco Salter de Mendonça era um rapaz da boa sociedade de Lisboa, um dos mais distinctos alumnos do collegio de marinha, reformado pelo intelligente ministro Martinho de


Скачать книгу