A novela gráfica como género literário. Alexandra Dias
modo, o grupo explora as estruturas artísticas da linguagem da banda desenhada, estabelece escolhas editoriais, que não as padronizadas, reinventando o livro enquanto objeto; reabilita estratégias surrealistas como a exploração de associações de ideias e de sonhos e privilegia ←57 | 58→registos autobiográficos. Desenvolve restrições como a eliminação de elementos estruturantes: a narrativa, o texto ou mesmo a imagem, de que são exemplo as histórias sem personagens, as narrativas em 3D e as sequências icónico-verbais poéticas, desprovidas de dimensão diegética.
Os constrangimentos estudados, e usados, pela OuLiPo, segundo Thierry Groensteen, no texto já citado, podem aplicar-se de forma idêntica à banda desenhada, pois aquilo que distingue a banda desenhada potencial da literatura potencial é o mesmo que distingue a banda desenhada convencional da literatura convencional. Na interseção entre o domínio literário e o da banda desenhada, o autor recorda que ambas têm em comum veicular e produzir um discurso; no entanto, a literatura é feita exclusivamente de palavras e de signos tipográficos que entram frequentemente, mas não obrigatoriamente, na composição da banda desenhada, onde são confrontados com motivos visuais, esses sim, completamente alheios ao universo literário. Na banda desenhada, o texto é um elemento facultativo e, estando presente, a sua relevância é de grau variável142. Para determinados semiólogos, a essência da banda desenhada é fundada na combinação do texto e do desenho, na sua irredutível mistura, o que constituía a convicção de Töpffer, em 1837. Se reconhecemos o texto como um dos dois elementos constitutivos da banda desenhada temos, em consequência, de associar a sua ausência nas silent strips, isto é, nas pranchas sem texto, a uma supressão ou a uma mutilação voluntária. Ainda que em reduzido número, a banda desenhada sem texto marca toda a história da nona arte, razão pela qual Thierry Groensteen considera que o texto é um ingrediente contingente, dispensável à produção de uma banda desenhada143.
As diferenças entre os dois domínios artísticos são determinantes para melhor identificar o campo de ação da banda desenhada potencial. É o desenho na sua fisicidade que está na base dessa distinção. Primeiro, a banda desenhada e a língua não partilham nem o mesmo alfabeto, nem a mesma sintaxe. É evidente que a sintaxe da banda desenhada é bem distinta, refere Groensteen, porquanto não há uma vinheta que cumpra a função sintática de sujeito, de predicado ou de complemento; no entanto, não pode ser negada a existência, no seio da prancha, de um conjunto submetido ao duplo regime da decupagem e da paginação, assim como de múltiplos laços de subordinação e de coordenação entre as imagens144. Os diferentes autores não estão de acordo quanto a poder identificar, ←58 | 59→num desenho, pequenas unidades discretas, indivisíveis e em número finito, correspondendo a um alfabeto. Na banda desenhada, são as relações entre os componentes da mesma imagem – nível morfológico – e as relações entre as vinhetas contíguas – nível sintático – que são semanticamente determinantes. Assim, os constrangimentos de tipo oulipiano, assentando na ordem, no número, na extensão ou na natureza das pequenas unidades da língua, não encontram equivalente aplicável à banda desenhada, exceto operar sobre unidades de maior amplitude e já muito elaboradas. A segunda diferença reside na solidariedade existente entre a banda desenhada e o seu suporte. Salvo exceções, como o caligrama e outras formas de texto poético, o texto literário é indiferente à sua repartição no espaço da página e no do livro. O escritor não pensa nele e entrega esta preocupação aos cuidados do editor. Já na banda desenhada, cada vinheta ocupa um local específico. A prancha, enquanto espaço compartimentado, determina uma localização para cada imagem, assim como uma forma e uma superfície. A gestão destes parâmetros constitui não somente uma prerrogativa do desenhador, mas uma parte essencial do seu trabalho. Os parâmetros técnicos do suporte, nomeadamente, o formato do livro, o número de páginas, a impressão a cores ou a preto e branco, entre outras restrições impostas pelo editor em consequência das especificidades da coleção de que fará parte, são constrangimentos que determinam a sua criação e com as quais o autor tem de lidar no momento em que concebe a obra. Para a OuBaPo, esta submissão obrigatória às normas do suporte, de um lado, e a solidariedade natural entre o enunciado e um espaço determinado que lhe corresponde, por outro, têm pelo menos duas consequências. Desde logo, certos constrangimentos que afetam a forma, o número de vinhetas, nomeadamente as técnicas de redução textual que não podem aplicar-se a não ser a bandas desenhadas curtas, uma vez que tecnicamente é muito difícil reduzir a duas ou três pranchas um texto mais extenso. Em seguida, os constrangimentos não podem ser implementados sem uma intervenção sobre o suporte em si: eles obrigam a divergir dos standards editoriais. Assim, a decupagem, as dobras, a introdução de elementos móveis ou páginas com transparências, etc., serão um recurso frequente nas obras oubapianas, pois agir sobre a escrita da banda desenhada é necessariamente agir sobre a imagem e sobre a organização do espaço ou da natureza do suporte145.
Partindo dos mesmos princípios da OuLiPo, os autores da OuBaPo adoptaram uma série de restrições que subdividiram em dois tipos: as restrições geradoras e as restrições transformadoras, que Groesnteen apresenta sob a forma de ←59 | 60→uma taxonomia146. As restrições geradoras são aquelas que, através de uma série de estratégias de escrita, permitem criar novos textos. Pertencem, a este grupo, a restrição icónica que consiste em limitar ou eliminar um elemento visual; a restrição plástica que reduz o modo de representação a figuras geométricas, marcas de carimbos, cores, etc.; a restrição do enquadramento que o circunscreve a um determinado ponto de vista ou ângulo de visão; a iteração icónica ou a repetição de uma imagem ou de um elemento gráfico; a iteração icónica parcial ou repetição de uma imagem com pequenas variações. Groensteen afirma que estas quatro primeiras restrições regulam a alternância da repetição e estabelecem a diferença que está na base da criação de histórias em banda desenhada e, portanto, são as mais comummente utilizadas. Seguem-se a pluri-legibilidade, isto é, a leitura em mais do que um sentido: tanto da direita para a esquerda como da esquerda para a direita, o equivalente ao palíndromo literário; a reversibilidade, ou possibilidade de uma banda desenhada poder ser lida em mais do que uma orientação: de cima para baixo e de baixo para cima; a montagem, ou seja, a conceção da página de forma a permitir leituras novas, com inclusão ou não de acetactos ou outro tipo de elementos que podem ser sobrepostos ao texto existente; a sequência aleatória, isto é, páginas cujas vinhetas são recortadas e cuja mobilidade lhes permite uma sequência em qualquer ordem; a distribuição regular, ou seja, a introdução (binária, aritmética, exponencial, etc.) de um determinado elemento de vinheta para vinheta. Groensteen propõe ainda a conceção de narrativas onde o espaço transcorrido entre os painéis aumentaria de acordo com uma determinada regra; a ordenação geométrica ou fixação da ordem e da forma das vinhetas numa página147.
As restrições transformadoras são as que atuam sobre um texto já existente, transformando-o num novo texto. Fazem parte deste grupo a substituição do texto ou da imagem, ou de ambos, de uma determinada história de banda desenhada. Os exemplos de substituição icónica são raros, mas Schuiten, o conhecido autor de Peanuts, adicionou imagens de uma parte de uma história de Tintin e incorporou-a na sua própria história. Uma outra variação, proposta por Killoffer, membro fundador da OuBaPo, é designada por «aveugle double»148. Alguém escolhe ou desenha uma página de banda desenhada; de seguida, dá o texto a um desenhador, pedindo-lhe para criar novos desenhos; e depois dá a prancha sem texto a um argumentista, pedindo-lhe para introduzir um novo ←60 | 61→texto e preencher os balões de fala, de pensamento, ou as legendas da narração; finalmente, os novos desenhos e o novo texto são combinados numa história nova, apenas marginalmente relacionada com o trabalho original. Outro método tomado de empréstimo à Oulipo é o «N+7» que consiste em substituir cada substantivo pelo sétimo que se lhe segue na ordem estabelecida pelo dicionário. Seguem-se a expansão, ou seja, o desenvolvimento de uma obra já existente acrescentando-lhe vinhetas; o seu oposto, a redução, seja ela arbitrária ou através de um princípio orientador; o reenquadramento que permite expandir ou reduzir o quadro de uma vinheta; a reinterpretação gráfica, que consiste em redesenhar uma novela gráfica ou recriar o seu estilo, de forma paródica ou não e, por último, a hibridação, união de duas vinhetas de duas ou mais narrativas icónicas, podendo ser do mesmo