A novela gráfica como género literário. Alexandra Dias

A novela gráfica como género literário - Alexandra Dias


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antes de ser uma arte é nitidamente uma linguagem105.

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      Assim, fica estabelecido que a banda desenhada não é uma forma de literatura, pois é uma linguagem, a usada pelas novelas gráficas. Se partirmos da questão colocada por Gérard Genette: quando ou onde há literatura?, e considerarmos com este autor que é literário qualquer texto que num regime condicional produz comprazimento estético, a novela gráfica é literatura: configura-se como uma estrutura abstrata na qual existem constantes discursivas homólogas às literárias, nomeadamente a linguagem ficcional. A ficcionalidade não caracteriza de modo exaustivo o texto literário, mas constitui uma propriedade necessária para a sua existência. Assim, a novela gráfica compartilha com a literatura o caráter de ficcionalidade, e é reconhecida como literária, porque a atitude de leitura que postula, enquanto prazer independente de qualquer interesse no sentido kantiano, é a do comprazimento estético.

      Desde os primeiros trabalhos estruturalistas acerca da banda desenhada, na sequência dos estudos de Umberto Eco e de Pierre Fresnault-Deruelle sobre a sua linguagem, que se tem vindo a verificar um interesse crescente por este meio ainda pouco conhecido no meio universitário. Este processo sofreu – e sofre ainda – altos e baixos, mas, analogamente a outro tipo de estudos sobre objetos mais ou menos comparáveis, como a fotonovela ou as adaptações cinematográficas, a atividade desenvolvida pelos investigadores em banda desenhada, sem ser abundante, não é negligenciável. Os progressos da teoria da banda desenhada não se revelaram ainda capazes de fundar uma verdadeira disciplina, nem de dissipar a desconfiança que continua a cercar o seu objeto. Não obstante, muitos são os esforços teóricos que procuram definir a especificidade da sua linguagem. Ao longo do tempo, acabou por se constituir um corpus que nos permite efetuar o percurso da metalinguagem da banda desenhada106 desde a derivação formalista, herança da ciência semiótica de 1960, até ao fim da década de 1990, momento em que decorre a tentativa de definir a banda desenhada como uma linguagem, com as suas próprias unidades e os seus próprios códigos, cuja forma mais realizada foi dada por Thierry Groensteen em Systéme de la Bande Dessinée.

      Rodolph Töpffer, ao destacar a indissociabilidade do texto e da imagem no exercício da literatura em estampas, estabelece a primeira conceção desta arte como sequência narrativa linear composta por signos icónicos e verbais, como ←40 | 41→uma linguagem onde o texto e a imagem surgem lado a lado, indissociáveis no processo de enunciação narrativa, apresentando assim a primeira definição de banda desenhada. A importância de Töpffer não residiu apenas no facto de a sua obra antecipar aquilo que viria a ser a banda desenhada contemporânea, os seus textos críticos constituem a primeira reflexão teórica sobre esta nova forma artística situada entre a caricatura tradicional e o imaginário pessoal. Depois deste esforço de teorização inicial, a prática pouco se separou da teoria. Passado mais de um século desde a publicação da primeira obra teórica, surge aquela que é considerada a primeira tentativa de sistematização estruturalista da linguagem da banda desenhada.

      Em 1964, Umberto Eco, em Apocalittici e Integrati: Comunicazioni di Massa e Teorie della Cultura di Massa, defende uma nova orientação nos estudos dos fenómenos da cultura popular, criticando a postura apocalítica daqueles que acreditavam que a cultura de massa era a ruína dos «altos valores» artísticos:

      E precisamente naquele ano leio L’esprit du temps de Edgar Morin, o qual diz que para podermos analisar a cultura de massas é preciso divertirmo-nos com ela secretamente […] Então porque não usar as minhas histórias aos quadradinhos e os meus livros policiais como objeto de trabalho?107.

      Desenvolvendo uma série de investigações sobre o fenómeno da receção, Umberto Eco procedeu a análises teóricas das mensagens introduzindo uma vasta dimensão semiótica constituída pela variabilidade dos códigos. Esta constatação leva-o a afirmar que as histórias de Milton Caniff se configuram como um novo género literário:

      Steve Canyon […] colocou-nos perante a existência de um «género literário» autónomo, dotado de elementos estruturais próprios, e de uma técnica comunicativa original, baseada na existência de um código partilhado pelos leitores e ao qual o autor recorre para articular, segundo leis formativas inéditas, uma mensagem que se dirige, conjuntamente, à inteligência, à imaginação e ao gosto dos leitores108.

      Na teoria crítica de Eco, a semântica da banda desenhada é constituída por uma série de elementos figurativos estereotipados, as metáforas e as onomatopeias visuais, e os diferentes tipos de balões surgem como elementos morfológicos que constituem a componente verbal da banda desenhada. Estes elementos semânticos estruturam-se numa gramática do enquadramento, e, neste âmbito, articulam-se numa série de relações entre palavra e imagem, nomeadamente as ←41 | 42→relações de complementaridade, de reiteração pleonástica e de independência irónica entre palavra e imagem. O semiólogo utiliza o termo enquadramento para definir as relações sintáticas da banda desenhada, identificando-o com o conceito cinematográfico de montagem. Umberto Eco foi o pioneiro na análise semiótica baseada na noção de código, defendendo que as unidades de articulação da imagem são apenas definíveis no contexto dessa mesma imagem, de tal forma que as imagens não são articuladas através de um código, mas texto icónico é um ato de produção de código, análise que viria a prevalecer nas décadas seguintes, influenciando de forma decisiva a abordagem teórica da linguagem da banda desenhada.

      Três anos mais tarde, em 1967, a Société Civile D’Études et Recherches des Littératures Dessinées, SOCERLID, organiza a exposição Bande dessinée et figuration narrative no Musée des Arts Décoratifs de Paris. Esta exposição vem a exercer uma influência profunda sobre a conceção que o público tem acerca deste meio. Por um lado, constitui a primeira tentativa de legitimação cultural da banda desenhada, e, por outro, o catálogo que dela derivou procura concretizar uma história da nona arte nas suas dimensões histórica e sociológica, mas também artística e estética. Este catálogo expõe, por ordem cronológica, as principais séries e os seus autores, contextulizando-os histórica e sociologicamente, apresentando um tipo de análise dos processos narrativos e da estrutura da imagem na banda desenhada contemporânea que teve uma adesão imediata por parte dos teorizadores. A década de 60 é ainda marcada por títulos como Bande Dessinée et Cultures, de Évelyne Sullerot, 1966, ou Opera Mundi e Bande dessiné: Histoire des histoires en images, de la préhistoire à nos jours, de Gérard Blanchard, 1969, reveladores das tendências historicizantes na abordagem da banda desenhada.

      A década de 1970 inicia-se com duas obras bem distintas entre si: por um lado, o catálogo da exposição exibida na Maison de la Culture de Montreuil, Imagerie Populaire Contemporaine, la Bande Dessinée, de 1971; por outro, uma recolha de artigos de aproximadamente quinhentas páginas, o que representa, face à época e à matéria tratada, uma obra de grande envergadura, de Francis Lacassin, intitulada Pour un 9e Art, la Bande Dessinée. Esta obra encontra-se organizada em quatro partes. A primeira, intitulada De l’Image Narrative à la Narration en Images, onde o autor, após apresentar a sua definição de banda desenhada, estabelece o seu percurso histórico; a segunda, intitulada Quelques Classiques, é composta pela análise de autores clássicos e dos seus trabalhos; a terceira, Miroir du Monde, estabelece as semelhanças entre a banda desenhada e a literatura popular, e atém-se em aspetos tais como a ficção científica, o herói, o racismo e o sonho, sempre numa perspetiva sociológica, e a quarta, Bande ←42 | 43→Dessinée et Cinema, onde o autor sistematiza a comparação entre cinema e banda desenhada.

      No ano seguinte, em 1972, Fresnault-Deruelle propõe, em La Bande Dessinée, Essai d’Analyse Sémiotique, entender a banda desenhada como uma gramática. Este investigador enquadra a banda desenhada em duas dimensões essenciais, a morfologia e a sintaxe. A morfologia comportaria todos os elementos constituintes da linguagem específica da banda desenhada: os elementos de natureza icónica, como a cor, o desenho, os tipos de plano no sentido cinematográfico e os ângulos de visão, a perspetiva, o contraste; os elementos de natureza verbal, como a legenda e o cartucho; e ainda os elementos de


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