A novela gráfica como género literário. Alexandra Dias

A novela gráfica como género literário - Alexandra Dias


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a enunciação do discurso. Para Hamburger, aquilo que distingue a linguagem quotidiana da literatura é o facto de as marcas de enunciação revelarem um grau maior ou menor de autenticidade. Entende-se por «enunciação autêntica»93 aquela em que é possível estabelecer graus de autenticidade, conforme os géneros épico, lírico ou dramático. Neste sentido, o género lírico é aquele em que se percebe um grau maior de autenticidade, pois nele um determinado eu produz enunciados de realidade autênticos, sem fingimentos; o género dramático ocuparia um ponto intermediário, já que nele se realiza a representação das ações expressas nos enunciados, mesmo que se finja; já o épico representaria a inautenticidade mais acentuada, através daquilo que a autora define como ficção e que está na base da sua teoria. A ficção é uma enunciação não autêntica, não porque ela tente fazer-se passar por real, mas porque se configura aos olhos do leitor como tal94. O que produz o efeito de não autenticidade é a estrutura lógica da ficção, formada por elementos como o monólogo e o diálogo. Mas o elemento preponderante em tal sentido é o que a autora define como «verbos dos processos internos»95. A narrativa ficcional compõe-se de verbos que são usados em situações em que jamais ocorreriam em enunciados autênticos. Da mesma forma, o facto de tais verbos aparecerem sob a forma do pretérito épico dão ao facto narrado um teor de impossibilidade que só a ficção pode produzir. É só no âmbito da ficção que tais enunciados podem ocorrer. A situação muda, porém, ←36 | 37→quando se trata de narrativas em primeira pessoa: «o eu da narração em primeira pessoa é um sujeito-de-enunciação autêntico»96. Este sujeito assemelha-se ao do género lírico, fala de si. Neste sentido, pode usar os verbos dos processos internos sem que isso apareça ao leitor como irrealidade. O sujeito da primeira pessoa pode dizer de si que pensou ou sentiu sem que pareça ao leitor um enunciado irreal. Neste caso existe fingimento, mas não ficção, pois a aparência de irrealidade deixa de existir. Por isso, Hamburger filia a narrativa em primeira pessoa nos relatos autobiográficos. Da autobiografia, a narrativa em primeira pessoa teria herdado os recursos que a fazem assumir o caráter de fingimento: tenta parecer real. É um enunciado autêntico, pois tal fingimento pode assumir, em casos extremos, a dificuldade de se precisar se o texto fala de um sujeito real ou inventado. Este caráter de fingimento faz com que a primeira pessoa assuma perspetivas narrativas que lhe garantam um aspeto de verdade. A origem na autobiografia faz com que a primeira pessoa assuma o caráter de uma narração histórica. O eu que narra não assume as formas do género lírico; possui, ao invés, a objetividade do relato histórico, pois o seu objeto passa a ser o próprio eu97. Nesta poética, a lírica é definida por uma determinada atitude de enunciação e, sobretudo, por um uso da língua diferente do normal, língua opaca, tornada matéria sensível e autónoma, não intercambiável, cujo fim é ela mesma.

      A chave teórica de toda esta problemática reside, para Genette, no conceito de função poética de Roman Jakobson: a insistência do texto na sua própria forma, mais percetível, intransitiva, minimizando a função comunicativa da linguagem. À pergunta: o que faz de um texto uma obra de arte?, a resposta de Jakobson é clara: a função poética. A poesia é definida como linguagem na sua função estética98. Mas, de acordo com Genette, tal como a teoria aristotélica desprezava toda a poesia não-ficcional, Jakobson e os seus seguidores nunca tentaram seriamente agregar a esfera da ficção (prosa, teatro), caracterizando-a pela simples ausência de imposições formais. Assim, tanto a poética temática de Aristóteles como a formal de Jakobson têm apenas parte da razão, pois cobrem somente uma parte das esferas literárias. O mais grave, de acordo com Genette, é que ambas as poéticas, uma e outra de tipo essencialista, são incapazes de abarcar, por exemplo, a literatura não-ficcional em prosa como a história, a biografia, o ensaio, entre outros99.

      ←37 | 38→

      Genette entende, por isso, necessário recorrer a uma poética condicionalista, mais instintiva e ensaística do que teórica ou doutrinal, que confie ao juízo de gosto, subjetivo e imotivado, o critério da literariedade. O seu princípio básico consiste em considerar literário todo o texto que provoca prazer estético. A sua relação com a universalidade manifesta-se sob a forma de desejo, como demonstrou Kant100. O descritivo, nestas poéticas, tende a ceder perante o valorativo e, consequentemente, o diagnóstico de literariedade de um determinado texto confunde-se com a apreciação subjetiva da qualidade. A ficcionalidade é, então, condição necessária, mas não suficiente, para a literariedade. Genette diz estar convencido do contrário, pois, se uma epopeia, uma tragédia, um soneto ou um romance são obras literárias, não é em virtude de uma avaliação estética, mas sim de um traço inerente a tais textos, tal como a ficcionalidade e a forma poética101. A literariedade parece totalmente independente dos juízos de valor individuais ou coletivos. A consequência final, para Genette, parece evidente: não se deve substituir as poéticas essencialistas pelas condicionalistas, mas colocar estas num lugar junto àquelas.

      A literariedade é um fenómeno plural, exige uma teoria pluralista que dê conta das diferentes formas que a língua tem de escapar à sua função prática e produzir objetos estéticos. Neste sentido, Genette propõe que na apreciação de um texto como obra literária entre em jogo o conceito de regime. Genette distingue em princípio dois regimes de literariedade: o constitutivo, complexo de intenções, convenções genéricas, tradições culturais, etc., e o condicional, apreciações estéticas subjectivas, e sempre revogáveis102. A categoria de regime cruza-se, para Genette, com a do critério empírico em que se baseia – ainda que seja a posteriori – um diagnóstico de literariedade. Distinguem-se dois tipos de critérios: o temático, relativo ao conteúdo do texto, e o remático, relativo ao caráter formal do texto, ao tipo de discurso que exemplifica. O cruzamento das duas categorias determina, para Genette, o quadro dos modos de literariedade possíveis. Assim, a literatura ficcional é a que se impõe essencialmente pelo caráter imaginário dos seus objetos e a literatura diccional ou de dicção é a que se impõe essencialmente pelas suas características formais. Neste sentido, admitindo a possibilidade de que se dão ambos os tipos no estado puro, Genette assinala que o mais frequente é que se combinem num mesmo texto literário. Por último, o autor assinala o que existe de comum entre o modo diccional e o modo ficcional: na sua opinião, ←38 | 39→é o caráter intransitivo, opaco, tanto do discurso poético como do discurso de ficção. A intransitividade da linguagem era atribuída só ao texto poético103, que se concretiza na imutabilidade da sua forma, mas no texto de ficção dá-se pelo caráter ficcional do seu objeto, que determina uma função paródica de pseudorreferência ou de denotação sem o objeto denotado. O texto de ficção, assim, não «conduz» a nenhuma realidade extratextual, tudo o que toma constantemente da realidade se transforma no elemento de ficção.

      Ora, quando a banda desenhada surge, graças a Töpffer ainda antes do aparecimento da arte cinematográfica, vem inscrever-se no âmbito do género narrativo e apropria-se das propriedades gerais de toda a narrativa, assim como do seu caráter ficcional. Para Groensteen, a banda desenhada conhece um problema muito semelhante àquele que afeta desde há muito o mundo das letras, pois não basta alinhar uma série de palavras para se obter uma obra literária, da mesma forma que não é suficiente alinhar imagens, mesmo solidárias entre si, para obter uma banda desenhada. Seguindo a esteira de Genette, também Thierry Groensteen considera que outras condições podem ser legitimamente trazidas a debate para a banda desenhada, tais como a natureza das imagens, a matéria, o modo de produção, as características formais, os modos de articulação, o suporte, a difusão e ainda as condições de receção, isto é, tudo o que inscreve as imagens num processo de comunicação específico. Para Groensteen, a procura da essência da banda desenhada não equivale ao processo de definição de literariedade104.

      A banda desenhada assenta num dispositivo que não conhece o uso familiar, já que nem todas as pessoas, e muito menos todos os desenhadores e artistas, se exprimem através deste meio – logo, apenas se pode comparar a outras formas de criação que tocam o domínio da arte ou da ficção. Uma vez que a banda desenhada não é fundada sobre um uso particular de uma língua, Groensteen defende que não é possível defini-la em termos de dicção. Mas ela também não se confunde com uma das formas de ficção, uma vez que existem bandas


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