A novela gráfica como género literário. Alexandra Dias
formada por imagens em sequência coerente, com ou sem texto, integrado ou não nas próprias imagens, que conta ou transmite uma história ou uma ideia com a máxima liberdade criativa, sendo portanto vastíssimo o leque de formas e tipos que pode revestir, da mais clássica história bem contada ao mais poético poema gráfico, sem limites de género, tema, forma, grafismo, tom37.
Ao apresentar narrativas dirigidas a um público adulto que procura uma alternativa às comic pulp fiction38, cria-se um espaço para a exploração estética e literária ←19 | 20→de temas que se afastam gradualmente do âmbito dos interesses de um público massificado e que pressupõem um público leitor com maturidade etária, dando lugar ao universo narrativo que Will Eisner designa por graphic literatura ou graphic novel39. De estrutura narrativa longa, publicada em formato de livro, com maior qualidade gráfica e estética, este novo género surge como consequência da rutura com as restrições impostas pelos editores que limitavam a cerca de quarenta o número de páginas por álbum. Os desenhadores e criadores obtêm desta forma espaço para criar narrativas de maior amplitude e complexidade temática. Hugo Pratt apresenta, em 1962, um romance em banda desenhada com cento e sessenta e três páginas, intitulado La Ballade de la Mer Sallée, onde narra as aventuras de um marinheiro solitário. Art Spiegelman, autor de Maus, relata a história do descendente de um judeu que escapou ao terror do Holocausto. Spiegelman constrói esta narrativa partindo do processo de efabulação celebrizado por Esopo: a personificação de gatos e ratos que representam, respetivamente, os nazis do III Reich e o povo judeu, parodiando a perseguição nazi aos judeus durante a II Guerra Mundial40. Esta obra foi publicada em França, em 1987 e 1992, em dois volumes com o formato de romance, pela conhecida editora Flammarion, especializada em literatura. Todos estes factos contribuíram para que se estreitassem cada vez mais os laços que uniam a banda desenhada à literatura.
A expressão graphic novel assume, em sentido restrito, duas aceções distintas, conforme se trata do contexto americano ou do contexto europeu. Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha (cujo mercado se identifica com o americano), este conceito distingue as comics pulp fiction das narrativas visuais, em livro, designando um novo género: um romance não escrito com palavras, mas constituído essencialmente por imagens. Neste sentido, a ênfase recai sobre novel, ao contrário da aceção europeia, que realça o adjetivo graphic. Os criadores europeus, herdeiros de uma tradição que encontra exemplos de novelas gráficas desde a origem da banda desenhada nos finais do século XIX, preferem, à conceção de uma história através de imagens (prática que se aproxima do processo de ilustração), a criação de uma renovada forma de expressão narrativa cuja construção obedece a uma nova lógica visual e gráfica41.
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Em Portugal, este conceito foi utilizado em 1997 por Rui Zink e António Jorge Gonçalves, como subtítulo do álbum A Arte Suprema – Uma Novela Gráfica42. O termo novela gráfica foi traduzido literalmente43 e introduzido no contexto artístico português da banda desenhada. Rui Zink reflete sobre este conceito em Literatura Gráfica?, Banda Desenhada Portuguesa Contemporânea, a primeira obra nacional dedicada à banda desenhada enquanto literatura, pondo em causa o galicismo metonímico banda desenhada. Nesta obra, o autor procede ainda ao inventário das diferentes designações propostas para a banda desenhada, nomeadamente, narrativa gráfica, novela gráfica, romance gráfico e literatura gráfica, clarificando que é a expressão literatura gráfica a que mais se lhe adequa, não obstante esta escolha implicar um problema: «nem todos os textos de BD serem, ou mesmo pretenderem ser, literatura»44.
Cremos que a questão não passa pela substituição de uma designação por outra, mas antes pela necessidade de conceptualizar o universo vasto em que se tornou a banda desenhada, de definir e clarificar cada uma das expressões que a designam. Por esse motivo, consideramos que o galicismo banda desenhada designa uma forma de expressão essencialmente gráfica, uma linguagem icónico-verbal, que pode ser poética ou narrativa e revestir géneros como o romance, a novela, o conto, a biografia ou mesmo a fábula, consideramos que as três designações fazem sentido quando aplicadas a universos textuais distintos. Narrativa gráfica é o termo que aponta para a essência da banda desenhada, define-a estruturalmente e permite englobar narrativas sem componente verbal; romance gráfico/novela gráfica constituem os termos que se aplicam a narrativas enquadradas dentro destes dois géneros literários, o que exclui um registo poético ou em prosa poética; e, por fim, literatura gráfica é o termo que pode ser aplicado a determinados textos de banda desenhada cuja componente verbal possua literariedade. Deste modo, podemos dizer que a banda desenhada é literatura gráfica sempre que apresenta componente verbal literária45, sendo dela excluídos os textos em ←21 | 22→banda desenhada que não contêm componente verbal e que nunca poderiam ser literatura, por razões óbvias.
As adaptações de Georges Bataille, Herberto Hélder e Raul Brandão, com Eduarda, de Miguel Rocha, Arquipélagos, de Dinis Conefrey, e Diário de K., de Filipe Abranches, respetivamente, ou de biografias como a de William Burroughs, com Mr. Burroughs, de Pedro Nora e David Soares, ou ainda o desenvolvimento de uma «ficção de horror» inspirada no Doutor Fausto, de Thomas Mann, com Sammahel, de David Soares, são exemplos de novelas gráficas. Estes álbuns, juntamente com outros, inspirados em episódios da História nacional, como, por exemplo, As Pombinhas do Sr. Leitão ou Borda d’Água, de Miguel Rocha, ou ainda História de Lisboa, de Filipe Abranches, apresentam-se como narrativas longas, em formato de livro, com qualidade gráfica e estética superior à dos comics e permitem observar uma série de processos homólogos aos do sistema literário. Constituem exemplos de obras que possuem requisitos narratológicos e ideológicos que nos permitem afirmar que existe uma ficção narrativa portuguesa em banda desenhada. A estrutura da narrativa da banda desenhada assemelha-se à da narrativa verbal, nela encontramos as mesmas categorias narrativas:
[…] a presença e elaboração de categorias da narrativa como a personagem, o espaço ou a ação, ou tratamentos de incidência discursiva como a elaboração do tempo, o estabelecimento de perspetivas narrativas, a localização e tonalidades estilísticas da voz do narrador, etc., etc. E a um outro nível de reflexão, a novela gráfica propicia análises de incidência ideológica: como a narrativa literária, ela remete também para particulares sistemas ideológicos, variavelmente visíveis nos discursos e atitudes das personagens, nos comentários do narrador, nas opções temáticas, etc.46.
Estas obras possuem uma estrutura novelística que nos coloca em presença de um género estruturalmente identificável com o romance. Sendo o romance uma forma proteica cujo desenvolvimento assume uma sucessão diversificada de formas, certamente nem todas esgotadas nos últimos anos do século XX, a sua evolução mostra como os modelos literários se multiplicaram e a poética perdeu a validade geral, assim como a pretensão de ordenar cada um dos géneros literários em compartimentos previamente estabelecidos, pois os fenómenos literários e artísticos são complexos e as facetas que podem revestir, imprevisíveis. Tudo é suscetível de ser combinado com tudo. As combinações não são certamente ilimitadas, mas podem ser imprevisíveis, tal é o caso da novela gráfica.
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Dedicando-se ao estudo da cultura de massas, Umberto Eco procedeu à primeira análise semiótica da banda desenhada e a sua leitura de Steve Canyon leva-o a afirmar que estamos perante um género literário autónomo, dotado de elementos estruturais