A novela gráfica como género literário. Alexandra Dias
e de ←12 | 13→festivais, feiras e exibições fizeram com que o reconhecimento da banda desenhada atingisse as elites intelectuais.
Um meio proteico como este oferece-se, inevitavelmente, a diferentes áreas de investigação, e progressivamente são dados os primeiros passos na academização da banda desenhada. Fresnault-Deruelle foi um dos jovens investigadores que dedicaram a sua atenção à banda desenhada. Em 1968, completava a dissertação Tin Tin, Bande Dessinée: Une Approche Sémiotique, que mais tarde se converteu em tese de doutoramento. Não obstante a resistência encontrada no seio da instituição universitária, inúmeras teses e dissertações foram dedicadas, na década de 1970, a diferentes aspetos da banda desenhada, encontrando na semiótica, a maioria dos trabalhos deste período, a sua inspiração e auto-justificação15. Os estudos de Umberto Eco sobre o comportamento semiótico do sistema da banda desenhada inauguraram esse academismo progressivo, permitindo refletir sobre os modos de organização dos elementos constitutivos da sua linguagem e a explicação dos mecanismos produtores de sentido.
Ainda nesta década, a banda desenhada criativa, assim como o próprio mundo, estavam em crise. Esta crise revelou-se positiva e agiu como um catalisador para a reconfiguração da banda desenhada francesa. Inspirados pelo clima de mudança social e fortemente influenciados pelo modelo americano dos comic books, os jovens artistas afastam-se de editoras tradicionais e publicam as suas próprias criações de forma independente16. Em Portugal, só na década de 1980 é que se começam a forjar as linhas dominantes que caracterizarão a década seguinte, uma banda desenhada de teor intelectualista e literário, de raiz urbana, oriunda de um universo de periferia e de marginalidade17. Só no final de 1990 seria defendida a primeira tese de doutoramento dedicada à banda desenhada enquanto forma literária18. Gradualmente, cresce o número de livrarias e de bibliotecas que têm vindo a colocá-la no seio das suas coleções. São já duas as bibliotecas especializadas e unicamente dedicadas à banda desenhada, a Bedeteca de Lisboa e a Bedeteca de Beja, e multiplicam-se os festivais nacionais, as conferências, os cursos de especialização e os workshops. Nem sempre este crescimento é acompanhado por um processo de sistematização, pelo que obras de ←13 | 14→natureza diversa reunidas sob o signo de uma mesma estrutura formal – a da narrativa icónico-verbal – convivem nas mesmas prateleiras sem que nenhum critério genológico as possa categorizar. Assim, um leitor que entra numa livraria e que deixa que o seu olhar percorra as lombadas dos livros criteriosamente alinhadas nas estantes até que se detenha num determinado volume, digamos «Alexandre O’Neill, Poesia» ou «Aquilino Ribeiro, O Romance da Raposa», sabe que o horizonte corresponde à expectativa. Mas, quando o olhar do mesmo leitor recai sobre a capa de um livro de banda desenhada cujo paratexto indica «novela gráfica», qual será o seu horizonte de expectativa19?
A história da banda desenhada enquanto narrativa sequencial em imagens remonta à medieval ars illuminandi, arte de adornar os textos manuscritos, uma das formas mais antigas de interação entre o literário e o visual. Reunir texto e imagem sob o mesmo suporte representa uma prática tão ancestral quanto a própria história da humanidade. O Livro dos Mortos do Antigo Egito, os baixos-relevos imperiais romanos, de que é exemplo a coluna de Trajano, a tapeçaria de Bayeux ou a pintura popular etíope constituem verdadeiras narrativas gráficas, onde o texto e a imagem se apresentam em relação de complementaridade20.
Na Europa, a utilização de desenhos dispostos em sequência como forma primitiva de banda desenhada data do século XVIII. Desenhadores e artistas consagrados utilizavam, já nesta época, o desenho para comentar a vida política e social. Estes desenhos, que circularam até ao início do século XX sob a forma de folhetins e de revistas, continham uma essência moralista e crítica, um grande teor narrativo cujo elemento central era a caricatura. Com a eclosão da I Grande Guerra, a escassez de tinta e de papel obrigou ao cancelamento de vários títulos, representando um enorme abalo na produção de banda desenhada europeia. Este período de estagnação da edição europeia permitiu a popularização da banda desenhada americana, os comic books. Produzidos em grande escala e com um formato atraente, design a cores e histórias que podiam ser apreciadas por um largo grupo etário, reuniam os componentes necessários a uma existência duradoira21.
Em Portugal, Raphael Bordallo Pinheiro inaugura o panorama português com a «primeira história aos quadradinhos»22. A Picaresca Viagem do Imperador de Rasilb pela Europa (Rasilb representa um anagrama de Brasil), publicada em ←14 | 15→1872, conta, com um humor mordaz, a história da visita do Imperador D. Pedro II à Europa, em 1871:
Decidimos aceitar A Picaresca Viagem como o exemplo real da primeira banda desenhada portuguesa, até porque a intenção era visivelmente de contar uma história inteira, o que determinou a edição em álbum de 16 páginas. Esta história é um todo homogéneo. Raphael Bordallo Pinheiro tinha achado a forma, a fórmula, o feitio23.
Fórmula que nunca mais foi abandonada e que encontrou em Raphael Bordallo Pinheiro um mestre e um precursor. A banda desenhada impõe-se como forma artística em Portugal, acompanha a evolução europeia, e é por ela fortemente marcada. De fenómeno de imprensa, com um discurso vincadamente humorista e caricatural, e de comentário social e político, evolui, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, para um fenómeno cultural e artístico autónomo.
Colocando de parte as teorias que situam historicamente a origem da banda desenhada nas pinturas rupestres, na tapeçaria de Bayeux, nos quadros de Hyeronimus Bosh ou em outras manifestações artísticas que exibem narrativas sequenciais24, e considerando somente as que associam o aparecimento da banda desenhada à imprensa periódica, pode afirmar-se que a sua história está diretamente associada à história de determinados tipos de impressão e de formatos de publicação25. Nos Estados Unidos, os formatos dominantes eram essencialmente dois, as tiras de jornal e os comic books. As tiras de jornal reúnem um amplo leque de características estéticas e de géneros de banda desenhada fortemente condicionados pelos constrangimentos gráficos da tira diária e da tira de domingo, um pouco maior, que são vistos como uma forma de arte secundária, por estarem inseridos em jornais. O chamado comic book, por outro lado, é uma revista pequena que corresponde a cerca de metade do tamanho dos tablóides. Na origem da indústria, a revista incorporou igualmente uma amálgama de géneros, tanto narrativos como não-narrativos; no entanto, mais recentemente, tem vindo a concentrar-se em histórias dedicadas a uma só personagem ou a um grupo de personagens, podendo compreender também uma única história, com ←15 | 16→dezoito a vinte e quatro páginas. A partir da década de 1980, uma terceira forma tem ganho espaço na cultura da impressão americana: a graphic novel, que, na gíria do setor, traduz qualquer tamanho de livro narrativo aos quadrinhos ou uma coletânea de pequenas narrativas. Cada um destes três tipos gráficos – a tira de jornal, a revista de banda desenhada e a graphic novel – tem os seus próprios horizontes em termos de conteúdo, de audiência e de prestígio cultural26.
Não obstante o conceito de graphic novel ter sido introduzido em Novembro de 1964 por Richard Kyle, num boletim informativo distribuído a todos os membros da Amateur Press Association, foi celebrizado com a obra A Contract with God, and Other Tenement Stories, de Will Eisner, editado em 1978, apesar de curiosamente esta expressão não surgir, na sua