A novela gráfica como género literário. Alexandra Dias
livresca três anos antes, em 1976, para descrever três trabalhos distintos: Bloodstar de Richard Corben (adaptado de um conto de Robert E. Howard), que usou esta expressão na sobrecapa e na introdução; Beyond Time and Again de George Metzger, que apresentou como subtítulo a frase «a graphic novel»; e Red Tide de Jim Steranko, que utilizou o termo graphic novel na introdução e a expressão visual novel na capa28. Outras obras houve, porém, na narração gráfica, ainda antes das datas mencionadas, que constituem graphic novels. Will Eisner nomeia como as mais representativas as obras de Lynd Ward, criador do romance sem texto, em xilogravura, Gods’ Man de 1929; de Milt Gross, que também criou uma narrativa só composta por imagens, He Done Her Wrong, em 1930; e de Gil Kane e Archie Goodwin, que conceberam His Name Is Savage, um book-length comic29, em 1968. A Contract with God reuniu todas estas estratégias narrativas e desbravou o caminho para aqueles que viriam a seguir. Will Eisner foi, sem dúvida, quem mais fez evoluir o universo da graphic novel, apesar de não ter inventado a forma, nem o termo em si.
No universo de leitura anglo-americano, a graphic novel tornou-se o passaporte para o reconhecimento da banda desenhada como uma forma de literatura. Charles Hatfield, em Alternative Comics, apresenta um estudo sobre a banda desenhada americana e o seu crescimento nos últimos trinta anos, dando ←16 | 17→especial relevo à banda desenhada alternativa, um dos setores mais férteis e desconcertantes deste meio, que dará origem ao aparecimento da graphic novel30.
A banda desenhada alternativa teve a sua origem no movimento underground das décadas de 1960 e 1970, designado por comix, fruto das convulsões sociais, políticas e ideológicas que a conduzem a um afastamento das convenções estéticas da banda desenhada de massas. Inovadora, radical e livre, conferiu-lhe o estatuto de meio artístico de expressão individual. O seu incremento estético e económico estimulou o desenvolvimento de lojas especializadas. Dentro deste ambiente especializado, a junção da banda desenhada alternativa aos livros de banda desenhada de massas resultou no crescimento de um mercado algo hermético, mas economicamente vantajoso. A banda desenhada alternativa, respondendo a este espírito, surgiu dentro do mercado da especialidade durante a década de 1970 e de forma mais vital e auto-consciente a partir do início dos anos 1980, com o advento de revistas como Raw (1980–1981) e Weirdo (1981–1993), ambas profundamente enraizadas na banda desenhada underground31, e a revista Love & Roquets (desde 1981), que, para além da vertente menos comercial e alternativa, se dedica também à banda desenhada tradicional32. Estas publicações participaram de um movimento crescente designado por «banda desenhada independente», que as fez aspirar ao abandono da fórmula «narrativa ficcional fácil» da banda desenhada tradicional. Guiados pelo exemplo da banda desenhada underground, muitas bandas desenhadas alternativas cultivaram uma abordagem mais artística, menos dependente da exploração de temas tabu e mais aberta à possibilidade de narrativas mais extensas e ambiciosas. Os criadores de banda desenhada alternativa, nomeadamente o pioneiro Will Eisner, Art Spiegelman, Harvey Pekar, Gilbert e Jaime Hernandez, elevaram a possibilidade de a banda desenhada ser entendida, não apenas como uma forma de cultura de massas, um repositório da Arte Pop, mas também e essencialmente como uma forma literária. Desta revisão da banda desenhada nasceu um movimento literário vital. Este movimento caracteriza-se pela rejeição de fórmulas destinadas a grandes audiências, pela exploração de novos géneros, ou pelo revivalismo de géneros antigos, pela diversificação de estilos gráficos, pela internacionalização e, essencialmente, pela exploração minuciosa de temas políticos e pessoais. A banda desenhada alternativa convidou ainda a um novo formalismo, isto é, a ←17 | 18→uma intensa revisão das tensões formais inerentes à banda desenhada. Entre as melhores, encontram-se aquelas que expandiram as possibilidades formais da arte da banda desenhada, fora das constrições das convenções da publicação em série, aquelas que criaram experiências empolgantes na estrutura da narrativa33. A banda desenhada alternativa alargou ainda o seu reportório temático através da exploração de géneros até então negligenciados, tais como a autobiografia, a reportagem e a ficção histórica. Ultrapassou os limites da banda desenhada tradicional a todos os níveis, incluindo o formato em livro, a publicação, a forma narrativa e o conteúdo temático. De todo este processo brotou o género graphic novel. Este género tornou-se um passaporte para a valorização do universo da banda desenhada. Na verdade, a graphic novel foi repetidamente invocada como sendo a mais radical novidade, até mesmo o prenúncio de uma nova forma de literacia visual34. De recente cunhagem, a sua exploração comercial conta com cerca de década e meia; no entanto, o seu reconhecimento revigorou o discurso crítico acerca da banda desenhada. O recente influxo das ambições artísticas da novela gráfica conduziu a mudanças salutares no meio crítico e uma tendência confirmada nasceu no meio académico. Este recente crescimento no estudo da banda desenhada refletiu-se nos trabalhos metalinguísticos de Will Eisner, Comics & Sequential Art, já referido nesta dissertação, e de Scott McCloud, Understanding Comics, de 1993. Ambas as obras, especialmente a de McCloud, tiveram um grande impacto na prática artística e na investigação académica, modificando a forma como o meio fala sobre si mesmo e sobre como deu origem a uma nova geração de desenhadores e de prática formal e artística da banda desenhada.
A expressão graphic novel permanece rodeada de controvérsia e é aceite com resignação quer por críticos, quer por desenhadores e argumentistas. Hilary Chute, especialista em literatura da Harvard Society of Fellows, em estudos femininos, entende que este é um termo usado erradamente, pois reúne um conjunto de textos genologicamente muito distintos, que apenas têm em comum o facto de constituírem narrativas, pelo que propõe o termo, mais amplo, de graphic narrative:
Yet graphic novel is often a misnomer. Many fascinating works grouped under this umbrela — including Spiegelman’s World War II — focused Maus, which helped rocket the term into public consciousness — aren’t novels at all: they are rich works of nonfiction; hence my emphasis here on the broader term narrative35.
←18 | 19→
Numa atitude de radicalidade, Eddie Campbell, desenhador e cartoonista escocês, celebrizado pela ilustração de From Hell de Alan Moore, publicou, em 2004, no The Comics Journal Message Board: NYTimes Mag Article, o «Eddie Campbell’s Graphic Novel Manifesto»36. Neste manifesto, Campbell exprime o seu desagrado pela generalização do uso desta expressão, porquanto induz erradamente os leitores, levando-os a pensar que se trata de uma forma ilustrada de literatura. A sua opinião é a de que existe uma enorme divergência entre desenhadores, e mal-entendidos por parte do público, em torno do uso desta expressão, que considera mais uma estratégia de marketing, difundida por livreiros e editores, do que um género de banda desenhada, pelo que se propõe estabelecer um conjunto de princípios clarificadores. Efetivamente, Campbell aborda um dos aspetos mais importantes da questão e um dos que mais contribuíram para a generalização deste termo – a evolução da forma gráfica dos comics ao longo dos tempos.
Na Europa, o conceito de graphic novel não se encontra estritamente definido, usando-se para estabelecer diferenças pontuais na qualidade artística entre graphic novels e outros tipos de banda desenhada. Comummente, refere-se a uma história que se afasta estilística e tematicamente dos géneros tradicionalmente associados às histórias em banda desenhada como as sagas dos super-heróis ou as aventuras de personagens infanto-juvenis, sendo também usado para se dissociar de obras de teor humorístico, que investem numa maior produção estética, complexidade narrativa e lexical, destinadas a um público adulto. A progressiva publicação em álbum permitiu uma maior liberdade criativa e a exploração de temas nunca