A novela gráfica como género literário. Alexandra Dias
na edição diária de «La Petite Gironde»1. Alguns anos mais tarde, a banda desenhada faz a sua aparição nos jornais destinados aos adultos. A imprensa permanece o suporte de referência da banda desenhada até cerca de finais dos anos setenta, estando a edição em álbum reservada a um número reduzido de autores. É portanto nos jornais – em particular no seio de alguns títulos especializados, hoje emblemáticos, como Tintin e Spirou nos anos 1940 e 1950, Pilote e posteriormente Métal Hurlant nos anos 1960 e 1970, ou ainda A Suivre nos anos 1980 – que nascem as grandes correntes da «nona arte» e que se produzem as principais mutações narrativas e gráficas. Não é senão a partir de 1980 que a banda desenhada penetra definitivamente no universo do livro, fenómeno ←9 | 10→favorecido pelo sucesso crescente do formato em álbum e pela multiplicação de editoras especializadas2. Esta mudança de suporte inicia o declínio e, em seguida, o quase desaparecimento da imprensa periódica como espaço de criação da banda desenhada, para dar lugar à produção de álbuns e revistas da especialidade.
Na atualidade, com mais de duas mil novidades aparecidas desde 2004 e best-sellers que ultrapassam os oitocentos mil exemplares vendidos, a banda desenhada é, em França, uma atividade em franca expansão3.
No entanto, é na própria evolução da nona arte que é necessário procurar os motivos do seu reconhecimento. A partir de 1950 nos Estados Unidos da América e no Japão, e dos anos 1960 na Europa, a banda desenhada deixa de se dirigir exclusivamente às crianças, para se direcionar em primeiro lugar aos adolescentes e, em seguida, aos adultos, graças a uma produção ambiciosa e diversificada de artistas que exploram todas as suas possibilidades estéticas. De subcultura, a banda desenhada é elevada ao estatuto, um pouco mais dignificante, de contracultura. É neste período que se formam os primeiros círculos de bedéfilos e de leitores documentados, tal como a Société Civile d’Études et de Recherches des Littératures Dessinées (SOCERLID) fundada por Claude Molinerti em 19644. Iniciando o reconhecimento da banda desenhada como arte, esta associação está na origem do aparecimento da crítica da banda desenhada, com a publicação da revista especializada Phenix, de 1966 a 1977, e ainda da primeira grande exposição organizada em França. Apresentada em 1967 no Museu de Artes Decorativas em Paris, e intitulada «Bande Dessinée et Figuration Narrative», explorou sobretudo as origens da banda desenhada norte-americana e europeia. Para além do êxito considerável, com cerca de quinhentos mil visitantes em quatro meses, esta exposição permitiu chamar a atenção do mundo artístico, mas também pensar a banda desenhada em termos de património. Esta mostra encontra o seu equivalente em 1971, em Nova Iorque, com a exposição «75 Years of the Comics». Desde então, a exibição de pranchas originais, de trabalhos preparatórios e ilustrações tornou-se uma prática corrente na compreensão da banda desenhada. Em 2004, a Cité des Sciences de Paris propôs também uma retrospetiva consagrada ao trabalho de André Franquin, enquanto o Musée de la Monnaie acolhia um rico e surpreendente diálogo entre as obras de Moebius e as do criador e desenhador Hayao Miyazaki5. A banda desenhada encontra um outro ←10 | 11→prolongamento nos festivais onde se reúnem leitores e profissionais, editores e livreiros, e onde se realizam conferências que lhe dão uma verdadeira visibilidade e contribuem para o seu conhecimento aprofundado.
Portugal, tal como observa João Paulo Cotrim no prólogo a Das Conferências do Casino à Filosofia de Ponta, «é um país que sempre se interessou por BD e que esteve sempre a par do que de melhor se fazia por esse mundo fora»6. A história da banda desenhada nacional encontra, também ela, na imprensa periódica o principal suporte, distinguindo-se da tendência franco-belga e americana por se dirigir, desde início, a um público adulto e usar uma linguagem plena de ironia e de crítica sarcástica. A produção das histórias de banda desenhada em Portugal estreia-se em 1850, na Revista Popular, com a publicação da primeira história de «Aventuras Sentimentaes e Dramáticas do Senhor Simplício Baptista», assinada por Flora7. Raphael Bordallo Pinheiro (1846–1905), notável artista português do século XIX e considerado o pai da banda desenhada portuguesa, teve as suas primeiras séries de desenhos publicadas no jornal O Binóculo (1870) e nas folhas volantes litografadas inaugurais de A Berlinda, onde divulgava verdadeiras sátiras gráficas sobre a vida política e cultural do país8. No início do século XX, continua a publicar-se banda desenhada através de jornais e cultiva-se sobretudo o cartoon, tendência que se mantém até cerca de meados do século. Entretanto, num contexto em que a banda desenhada é dedicada em exclusivo aos adultos, surgem os primeiros jornais infantis onde a banda desenhada destinada às crianças começa a fazer a sua aparição. Também por esta altura, chegam às redações dos jornais lisboetas os comics americanos, incluídos nos suplementos dominicais. O período da II Guerra Mundial, na opinião de Boléo e Pinheiro, pode ser caracterizado por assumir quatro tendências fundamentais: a banda desenhada de aventuras, com argumentos originais, mas claramente influenciada pela estética norte-americana; a banda desenhada de aventuras de tradição mais alargada, recriada com uma maior originalidade, de influência franco-belga; as adaptações de obras literárias; e, por fim, a banda desenhada histórica que engloba, por um lado, períodos da História de Portugal e biografias de personalidades históricas e, por outro, adaptações de romances históricos9.
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A década de 1960 representa uma viragem na história da banda desenhada. Em Portugal, manifestam-se os primeiros sinais de abertura temática e de transgressão estética, com a exposição do corpo e do erotismo, e com aquilo que Boléo e Pinheiro designam por «amadurecimento temático e psicológico»10. Em França, dão-se os primeiros passos na intelectualização e na investigação crítica, iniciada por um pequeno grupo de entusiastas reunidos sob a designação de Club des Amis de la Bande Dessinée11. Este processo de intelectualização tem início, em 1961, com a revista de ficção científica intitulada Fiction. A revista, que no essencial consistia na tradução de pequenas histórias anglo-saxónicas, publicou um artigo que desejava nostalgicamente a Âge d’Or de la Bande Dessinée, a idade de ouro da década de 1930 dos super-heróis norte-americanos. Este artigo deu origem a uma pequena série de ensaios, que seguiram a mesma linha temática, e a um estudo posterior que quantificou a extensão da popularidade da banda desenhada entre os leitores da revista. Daqui derivou a criação oficial, em 1962, do Club des Amis de la Bande Dessinée (CBD), e o seu corolário, o jornal Giff-Wiff, editado por Francis Lacassin, o responsável pelo primeiro curso sobre história e estética da banda desenhada lecionado na Sorbonne12. É neste jornal que se começa a constituir a metalinguagem da banda desenhada, síntese das metalinguagens cinematográficas e das investigações académicas emergentes.
Em 1965, realiza-se, em Bordighera, Itália, o primeiro congresso internacional sobre banda desenhada, onde marcam presença elementos do CBD, assim como desenhadores e argumentistas franceses. Pouco tempo depois, o Musée des Arts Decoratifs de Paris acolhe a exposição «Bande Dessinée et Figuration Narrative»13, organizada pela Société d’Etudes et de Recherches des Littératures Dessinées (SOCERLID), expansão do CBD, responsável não só por promover a banda desenhada, mas por influenciar profundamente o seu discurso crítico. Deve-se ainda a este grupo a popularização tanto da expressão bande dessinée, traduzida literalmente