Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
das lindas paisagens de Leiria, das boas vistas: a Sra. D. Josefa gostava muito do passeio ao pé do rio; até já ouvira dizer que nem em Lisboa havia coisa assim. D. Joaquina Gansoso preferia a igreja da Encarnação, no alto.
— Desfruta-se muito, dali.
Amélia disse sorrindo:
— Eu por mim gosto daquele bocado ao pé da Ponte, debaixo dos chorões. — E partindo com os dentes o fio da costura: — É tão triste!
Amaro olhou para ela, então, pela primeira vez. Tinha um vestido azul muito justo ao seio bonito; o pescoço branco e cheio saía dum colarinho voltado; entre os beiços vermelhos e frescos o esmalte dos dentes brilhava; e pareceu ao pároco que um buçozinho lhe punha aos cantos da boca uma sombra sutil e doce.
Houve um pequeno silêncio, — o cônego Dias com o beiço descaído ia já cerrando as pálpebras.
— Que será feito do Sr. padre Brito? perguntou D. Joaquina Gansoso.
— Está talvez com a enxaqueca, pobre de Cristo! lembrou piedosamente a Sra. D. Maria da Assunção.
Um rapaz que estava junto do aparador disse então:
— Eu vi-o hoje a cavalo, ia para os lados da Barrosa.
— Homem! disse logo, com azedume, a irmã do cônego, a Sra. D. Josefa Dias, é milagre ter o senhor reparado!
— Por quê, minha senhora? disse ele erguendo-se e chegando-se ao grupo das velhas.
Era alto, todo vestido de preto: sobre o rosto de pele branca, regular, um pouco fatigado, destacava bem um bigode pequeno muito negro, caído aos cantos, que ele costumava mordicar com os dentes.
— Ainda ele o pergunta! exclamou a Sra. D. Josefa Dias. O senhor, que nem lhe tira o chapéu!
— Eu?
— Disse-mo ele, afirmou ela com uma voz cortante. E acrescentou:
Ai, senhor pároco, bem pode chamar o Sr. João Eduardo para o bom caminho. — E teve um risinho maligno.
— Mas eu parece-me que não ando no mau caminho, disse ele rindo, com as mãos nos bolsos. E a cada momento os seus olhos se voltavam para Amélia.
— É uma graça! exclamou a Sra. D. Joaquina Gansoso. Olhe, com o que o senhor disse hoje lá em casa, de tarde, da Santa da Arregassa, não há-de ganhar o Céu!
— Ora essa! gritou a irmã do cônego, voltando-se bruscamente para João Eduardo. Então o que tem o senhor a dizer da Santa? Acha talvez que é uma impostora?
— Credo, Jesus! disse a Sra. D. Maria da Assunção, apertando as mãos e fitando João Eduardo, com um terror piedoso. Pois ele havia de dizer isso? Cruzes!
— Não, o Sr. João Eduardo, afirmou gravemente o cônego, que espertara, desdobrando o seu lenço vermelho — não era capaz de dizer uma dessas.
Amaro perguntou então:
— Quem é a Santa da Arregassa?
— Credo! Pois não tem ouvido falar, senhor pároco? exclamou numa admiração a Sra. D. Maria da Assunção.
— Há-de ter ouvido, afirmava a Sra. D. Josefa Dias com autoridade. Diz que os jornais de Lisboa vêm cheios disso!
— É, com efeito, uma coisa bem extraordinária, ponderou com um tom profundo o cônego.
A S. Joaneira interrompeu a meia, e tirando a luneta:
— Ai, não imagina, senhor pároco, é o milagre dos milagres!
— Se é! se é!, disseram.
Houve um recolhimento devoto.
— Mas então?... perguntou Amaro, todo curioso.
— Olhe, senhor pároco, começou a Sra. D. Joaquina Gansoso endireitando-se no xale, falando com solenidade: a Santa é uma mulher que aqui há numa freguesia perto, que está há vinte anos na cama...
— Vinte e cinco, advertiu-lhe baixo D. Maria da Assunção, tocando-lhe com o leque no braço.
— Vinte e cinco? Pois olha, ao senhor chantre ouvi eu dizer vinte.
— Vinte e cinco, vinte e cinco, afirmou a S. Joaneira. E o cônego apoiou-a, oscilando gravemente a cabeça.
— Está entrevadinha de todo, senhor pároco! rompeu a irmã do cônego, ávida de falar. Parece uma alminha de Deus! Os bracinhos são isto! — E mostrava o dedo mínimo. — Para a gente a ouvir é necessário pôr-lhe a orelha ao pé da boca!
— Pois se ela se sustenta da graça de Deus! disse lamentosamente a Sra. D. Maria da Assunção. Coitadinha! que até a gente lembra-se...
Houve entre as velhas um silêncio comovido. João Eduardo, que por trás das velhas, de pé, com as mãos nos bolsos, sorria mordicando o bigode, disse então:
— Olhe, senhor pároco, a coisa é o que os médicos dizem: é que aquilo é uma doença nervosa.
Aquela irreverência fez, entre as velhas devotas, um escândalo; a Sra. D. Maria da Assunção persignou-se logo à "cautela".
— Pelo amor de Deus! gritou a Sra. D. Josefa Dias, o senhor diga isso, diante de quem quiser, menos de mim! É uma afronta!
— É que até pode cair um raio, dizia para os lados, baixo, a Sra. D. Maria da Assunção, muito aterrada.
— Olhe, também lho digo, exclamou a Sra. D. Josefa Dias, o senhor é um homem sem religião e sem respeito pelas coisas santas. — E voltando-se para o lado de Amélia, muito azeda: — Olhe, filha minha é que eu lhe não dava!
Amélia corou; e João Eduardo, fazendo-se vermelho também, curvou-se sarcasticamente:
— Eu digo o que dizem os médicos. E de resto, acredite que não tenho pretensões a casar com pessoa da sua família! Nem mesmo consigo, Sra. D. Josefa!
O cônego deu uma risada muito pesada.
— Arreda! Cruzes! gritou ela, furiosa.
— Mas que faz então a Santa? perguntou o padre Amaro, para pacificar.
— Tudo, senhor pároco, disse a Sra. D. Joaquina Gansoso: está sempre de cama, sabe rezas para tudo; pessoa por quem ela peça tem a graça do Senhor; é a gente apegar-se com ela e cura-se de toda a moléstia. E depois, quando comunga, começa a erguer-se, e fica com o corpo todo no ar, com os olhos erguidos para o Céu, que até chega a fazer terror.
Mas neste momento uma voz disse à porta da sala:
— Ora viva a sociedade! Isto hoje está de truz!
Era um rapaz extremamente alto, amarelo, com as faces cavadas, uma grenha riçada, um bigode a D. Quixote; quando ria tinha uma sombra na boca, porque lhe faltavam quase todos os dentes de diante; e nos seus olhos encovados, de grandes olheiras, errava um sentimentalismo piegas. Trazia uma guitarra na mão.
— Então como vai isso hoje? perguntaram-lhe logo.
— Mal, respondeu ele com voz triste, sentando-se. Sempre as dores no peito, a tossezita.
— Então não se dava bem com o óleo de fígados de bacalhau?
— Qual! fez ele desconsoladamente.
— Uma viagem à Madeira, isso é que era, isso é que era! disse a Sra. D. Joaquina Gansoso com autoridade.
Ele riu, com uma jovialidade súbita:
— Uma viagem à Madeira! Não está má! A D. Joaquina Gansoso tem-nas boas! Um pobre amanuense de administração com dezoito vinténs por dia, mulher e quatro filhos! Para a Madeira!
— E como vai ela, a Joanita?
— Coitadita, lá vai! Tem saúde, graças a Deus! Gorda, sempre com bom apetite. Os pequenos, os dois mais