Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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com a sola aberta. Queixava-se sobretudo do frio das mãos, que o impedia de ferir com justeza o teclado, e não o deixava escrever no cartório.

      — Prendem-se-me os dedos, dizia tristemente.

      Mas quando a S. Joaneira lhe pagou o primeiro mês das lições, o velho apareceu muito contente, com umas grossas luvas de lã.

      — Ah, Tio Cegonha, como vem quentinho! disse-lhe Amélia.

      — Foi o seu dinheiro, minha rica menina. Agora ando a juntar para umas meias de lã. Deus a abençoe, minha menina, Deus a abençoe!

      E tinham-se-lhe arrasado os olhos de lágrimas. Amélia tomara-se a "sua rica amiguinha". Já lhe fazia confidências: contava-lhe as suas necessidades, as saudades da filha, as suas glórias na Sé de Évora, quando diante do senhor arcebispo, vistoso na sua sobrepeliz escarlate, acompanhava o Lausperene.

      Amélia não se esqueceu das meias de lã do Tio Cegonha. Pediu ao chantre que lhe desse umas meias de lã.

      — Ora essa! para quê? para ti? disse ele com o seu riso grosso.

      — Para mim, sim, senhor.

      — Deixe falar, senhor chantre! disse a S. Joaneira. Olha a idéia!

      — Não deixe falar, não! dê, sim?!

      Lançou-lhe os braços ao pescoço; fez-lhe olhinhos doces.

      — Ah, sereia! dizia o chantre rindo: que esperanças! há-de ser o diabo!... Pois sim, aí tens. — E deu-lhe dois pintos para umas meias de lã.

      No dia seguinte tinha-os ela embrulhados num papel, que dizia por fora em letras garrafais: Ao meu rico amigo Tio Cegonha, a sua discípula.

      Uma manhã, depois, viu-o mais amarelo, mais chupado:

      — Ó Tio Cegonha, disse de repente, quanto lhe dão lá no cartório?

      O velho sorriu-se:

      — Ora, minha rica menina, quanto me hão-de dar? uma bagatela.

      Quatro vinténs por dia. Mas o Sr. Neto faz-me algum bem...

      — E chegam-lhe quatro vinténs?

      — Ora! como hão-de chegar?

      Sentiram-se os passos da mãe; e Amélia, retomando gravemente a atitude de lição, começou a solfejar alto, com um ar profundo.

      E desde esse dia tanto pediu, tanto exclamou, que levou a mãe a dar de almoçar e de jantar ao Tio Cegonha nos dias de lição. Assim se estabeleceu entre ela e o velho uma grande intimidade. E o pobre Tio Cegonha, saindo do seu frio isolamento, acolhia-se àquela amizade inesperada, como a um conchego tépido. Encontrava nela o elemento feminino que amam os velhos, com as carícias, as suavidades de voz, as delicadezas de enfermeira; achava nela a única admiradora da sua música; e via-a sempre atenta às histórias do seu tempo, às recordações da velha Sé de Évora que ele amava tanto, e que lhe fazia dizer, quando se falava de procissões, ou de festas de igreja:

      — Para isso Évora! em Évora é que é!

      Amélia aplicava-se muito ao piano: era a coisa boa e delicada da sua vida; já tocava contradanças e antigas árias de velhos compositores; a Sra. D. Maria da Assunção estranhava que o mestre lhe não ensinasse o Trovador.

      — Coisa mais linda! dizia.

      Mas o Tio Cegonha só conhecia a música clássica, árias ingênuas e doces de Lully, motivos de minuetes, motetes floridos e piedosos dos doces tempos freiráticos.

      Uma manhã o Tio Cegonha encontrou Amélia muito amarela e triste. Desde a véspera queixava-se de "mal-estar". Era um dia nublado, muito frio. O velho queria ir-se embora.

      — Não, não, Tio Cegonha, disse ela, toque alguma coisa para eu me entreter.

      Ele tirou o seu capote, sentou-se, tocou uma melodia simples, mas extremamente melancólica.

      — Que lindo! que lindo! dizia Amélia, de pé junto ao piano.

      E quando o velho deu as últimas notas:

      — O que é? perguntou ela.

      O Tio Cegonha contou-lhe que era o começo de uma Meditação feita por um frade seu amigo.

      — Coitado, disse, teve bem o seu tormento!

      Amélia quis logo saber a história; e sentando-se no mocho do piano, embrulhando-se no seu xale:

      — Diga, Tio Cegonha, diga!

      Era um homem que tivera em novo uma grande paixão por uma freira; ela morrera no convento daquele amor infeliz; e ele, de dor e de saudade, fizera-se frade franciscano...

      — Parece que o estou a ver...

      — Era bonito?

      — Se era! Um rapaz na flor da vida, rico... Um dia veio ter comigo ao órgão: "Olha o que eu fiz", disse-me ele. Era um papel de música. Abria em ré menor. Pôs-se a tocar, a tocar... Ai, minha rica menina, que música! Mas não me lembra o resto!

      E o velho, comovido, repetiu no piano as notas plangentes da Meditação em ré menor.

      Amélia todo o dia pensou naquela história. De noite veio-lhe uma grande febre, com sonhos espessos, em que dominava a figura do frade franciscano, na sombra do órgão da Sé de Évora. Via os seus olhos profundos reluzirem numa face encovada: e, longe, a freira pálida, nos seus hábitos brancos, encostada às grades negras do mosteiro, sacudida pelos prantos do amor! Depois, no longo claustro, a ala dos frades franciscanos caminhava para o coro: ele ia no fim de todos, curvado, com o capuz sobre o rosto, arrastando as sandálias, enquanto um grande sino, no ar nublado, tocava o __PAGESEPARATOR__dobre dos finados. Então o sonho mudava: era um vasto céu negro, onde duas almas enlaçadas e amantes, com hábitos de convento e um ruído [[wikt:inefável|inefável] de beijos insaciáveis, giravam, levadas por um vento místico; mas desvaneciam-se como névoas, e na vasta escuridão ela via aparecer um grande coração em carne viva, todo traspassado de espadas, e as gotas de sangue que caíam dele enchiam o céu duma chuva escarlate. Ao outro dia a febre acalmou. O doutor Gouveia tranquilizou a S. Joaneira com uma simples palavra: — Nada de sustos, minha rica senhora, são os quinze anos da rapariga. Hão-de-lhe vir amanhã as vertigens e os enjôos... Depois acabou-se. Temo-la mulher.

      A S. Joaneira compreendeu.

      — Esta rapariga tem o sangue vivo e há-de ter as paixões fortes! acrescentou o velho prático, sorrindo e sorvendo a sua pitada.

      Por esse tempo o senhor chantre, uma manhã, depois do seu almoço de açorda, caiu de repente morto com uma apoplexia. Que consternação inesperada, para a S. Joaneira! Durante dois dias, esguedelhada, em saias brancas chorou, gemeu pelos quartos. D. Maria da Assunção, as senhoras Gansosos vieram acalmar, amansar a sua dor: e a Sra. D. Josefa Dias resumiu as consolações de todos, dizendo:

      — Deixa, filha, que te não há-de faltar quem te ampare!

      Era então no começo de Setembro; a Sra. D. Maria da Assunção, que tinha uma casa na praia da Vieira, propôs levar a S. Joaneira e Amélia para a estação dos banhos, para ela espalhar, nos bons ares saudáveis, em lugar diferente, aquela dor.

      — É uma esmola que me fazes, dissera a S. Joaneira. Sempre me lembra que era ali que ele punha o guarda-chuva... Ali que ele se sentava a ver-me costurar!

      — Está bom, está bom, deixa-te disso. Come e bebe, toma os teus banhos, e o que lá vai lá vai. Olha que ele tinha bem os seus sessenta.

      — Ah, minha rica! a gente é pela amizade que lhes ganha.

      Amélia tinha então quinze anos, mas era já alta e de bonitas formas. Foi uma alegria para ela a estação na Vieira! Nunca vira o mar; e não se fartava de estar sentada na areia, fascinada pela vasta água azul, muito mansa, cheia de sol; às vezes no horizonte passava um fumo delgado de paquete; a monótona e gemente cadência


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