Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
preguiçosa! Olha que mulher de casa!
Ela ria; conversavam. A S. Joaneira sabia as coisas interessantes do dia: o major despedira a criada; ou havia quem oferecesse dez moedas pelo porco do Carlos do correio. De vez em quando a Ruça vinha ao armário buscar um prato ou uma colher; então falava-se do preço dos gêneros, do que havia para o jantar. A S. Joaneira tirava as lunetas, traçava a perna, e balouçando o pé calçado numa chinela de ourelo, punha-se a dizer os pratos.
— Hoje temos grão-de-bico. Não sei se o senhor pároco gostará, foi para variar...
Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas comidas descobria afinidade de gostos com Amélia.
Depois, animando-se, bulia-lhe no cesto da costura. Um dia encontrara uma carta; perguntou-lhe pelo derriço; ela respondeu, picando vivamente o pesponto:
— Ai! a mim ninguém me quer, senhor pároco...
— Não é tanto assim, acudiu ele. Mas suspendeu-se, muito vermelho, afetando tossir.
Amélia às vezes fazia-se muito familiar; um dia mesmo, pediu-lhe para sustentar nas mãos uma meadinha de retrós que ela ia dobar.
— Deixe falar, senhor pároco! exclamou a S. Joaneira. Ora a tolice! Isto, em se lhe dando confiança!...
Mas Amaro prontificou-se, rindo, todo contente: — ele estava ali para o que quisessem, até para dobadoura! Era mandarem, era mandarem!... E as duas mulheres riam, dum riso cálido, enlevadas naquelas maneiras do senhor pároco, "que até tocavam o coração" ! Às vezes Amélia pousava a costura e tomava o gato no colo; Amaro chegava-se, corria a mão pela espinha do maltês que se arredondava, fazendo um ronrom de gozo.
— Gostas? dizia ela ao gato, um pouco corada, com os olhos muito ternos. E a voz de Amaro murmurava, perturbada:
— Bichaninho gato! bichaninho gato!
Depois a S. Joaneira erguia-se para dar o remédio à idiota ou ir palrar à cozinha. Eles ficavam sós; não falavam, mas os seus olhos tinham um longo diálogo mudo, que os ia penetrando da mesma languidez dormente. Então Amélia cantarolava baixo o Adeus ou o Descrente: Amaro acendia o seu cigarro, e escutava, bamboleando a perna.
— É tão bonito isso! dizia.
Amélia cantava mais acentuadamente, cosendo depressa; e a espaços, erguendo o busto, mirava o alinhavado ou o pesponto, passando-lhe por cima, para o assentar, a sua unha polida e larga.
Amaro achava aquelas unhas admiráveis, porque tudo que era ela ou vinha dela lhe parecia perfeito: gostava da cor dos seus vestidos, do seu andar, do modo de passar os dedos pelos cabelos, e olhava até com ternura para as saias brancas que ela punha a secar à janela do seu quarto, enfiadas numa cana. Nunca estivera assim na intimidade duma mulher. Quando percebia a porta do quarto dela entreaberta, ia resvalar para dentro olhares gulosos, como para perspectivas dum paraíso: um saiote pendurado, uma meia estendida, uma liga que ficara sobre o baú, eram como revelações da sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo pálido. E não se saciava de a ver falar, rir, andar com as saias muito engomadas que batiam as ombreiras das portas estreitas. Ao pé dela, muito fraco, muito langoroso, não lhe lembrava que era padre; o Sacerdócio, Deus, a Sé, o Pecado ficavam embaixo, longe, via-os muito esbatidos do alto do seu enlevo, como de um monte se vêem as casas desaparecer no nevoeiro dos vales; e só pensava então na doçura infinita de lhe dar um beijo na brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha.
Às vezes revoltava-se contra estes desfalecimentos, batia o pé:
— Que diabo, é necessário ter juízo! É necessário ser homem!
Descia, ia folhear o seu Breviário; mas a voz de Amélia falava em cima, o tique-tique das suas botinas batia o soalho... Adeus! a devoção caia como uma vela a que falta o vento; as boas resoluções fugiam, e lá voltavam as tentações em bando a apoderar-se do seu cérebro, frementes, arrulhando, roçando-se umas pelas outras como um bando de pombas que recolhem ao pombal. Ficava todo subjugado, sofria. E lamentava então a sua liberdade perdida: como desejaria não a ver, estar longe de Leiria, numa aldeia solitária, entre gente pacífica, com uma criada velha cheia de provérbios e de economia, e passear pela sua horta quando as alfaces verdejam e os galos cacarejam ao sol! Mas Amélia, de cima, chamava-o — e o encanto recomeçava, mais penetrante.
A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa e feliz, a melhor do dia. A S. Joaneira trinchava, enquanto Amaro conversava cuspindo os caroços das azeitonas na palma da mão e enfileirando-os sobre a toalha. A Ruça, cada dia mais ética, servia mal, sempre a tossir; Amélia às vezes erguia-se para ir buscar uma faca, um prato ao aparador. Amaro queria levantar-se logo, atencioso.
— Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor pároco! dizia ela. E punha-lhe a mão no ombro, e os seus olhos encontravam-se.
Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo sobre o estômago, sentia-se regalado, gozava muito no bom calor da sala; depois do segundo copo da Bairrada tornava-se expansivo, tinha gracinhas; às vezes mesmo, com um brilho terno no olho, tocava fugitivamente o pé de Amélia debaixo da mesa; ou, fazendo um ar sentido, dizia "que muito lhe pesava não ter uma irmãzinha assim" !
Amélia gostava de ensopar o miolo do pão no molho do guisado: a mãe dizia-lhe sempre:
— Embirro que faças isso diante do senhor pároco.
E ele então rindo:
— Pois olhe, também eu gosto. Simpatia! Magnetismo!
E molhavam ambos o pão, e sem razão davam grandes risadas. Mas o crepúsculo crescia, a Ruça trazia o candeeiro. O brilho dos copos e das louças alegrava Amaro, enternecia-o mais; chamava à S. Joaneira mamã; Amélia sorria, de olhos baixos, trincando com a ponta dos dentes cascas de tangerina. Daí a pouco vinha o café; e o padre Amaro ficava muito tempo partindo nozes com as costas da faca, e quebrando a cinza do cigarro na borda do pires.
Àquela hora aparecia sempre o cônego Dias; sentiam-no subir pesadamente, dizendo da escada:
— Licença para dois!
Era ele e a cadela, a Trigueira.
— Ora Nosso Senhor vos dê muito boas-noites! dizia assomando à porta.
— Vai a gotinha de café, senhor cônego? perguntava logo a S. Joaneira.
Ele sentava-se, exalando um profundo ufa! — Vá lá a gotinha do café! — E batendo no ombro do pároco, olhando para a S. Joaneira:
— Então, como vai cá o seu menino?
Riam; vinham as histórias do dia. O cônego costumava trazer no bolso o Diário Popular; Amélia interessava-se pelo romance, a S. Joaneira pelas correspondências amorosas nos anúncios.
— Ora vejam que pouca-vergonha!... dizia ela, deliciando-se.
Amaro então falava de Lisboa, de escândalos que lhe contara a tia: dos fidalgos que conhecera "em casa do Sr. conde de Ribamar". Amélia, enlevada, escutava-o com os cotovelos sobre a mesa, roendo vagarosamente a ponta do palito.
Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina esmorecia à cabeceira da cama: e a pobre velha, com uma medonha touca de rendas negras que tornava mais lívida a sua carinha engelhada como uma maçã reineta, fazendo debaixo da roupa uma saliência quase imperceptível, fixava em todos, com susto, os seus olhinhos côncavos e chorosos.
— É o senhor pároco, tia Gertrudes! gritava-lhe Amélia ao ouvido. Vem ver como está.
A velha fazia um esforço, e com uma voz gemida:
— Ah! é o menino!
— É o menino, é, diziam rindo.
E a velha ficava a murmurar, espantada:
— É o menino, é o menino!
— Pobre de Cristo! dizia Amaro. Pobre de Cristo! Deus lhe dê uma boa morte!
E