Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
semanas depois veio a Leiria uma companhia ambulante de zarzuela. Falava-se muito da contralto, a Gamacho. A Sra. D. Maria da Assunção tinha um camarote, levou a S. Joaneira e Amélia — que duas noites antes estivera costurando, com uma pressa comovida, um vestido de cassa todo florido de laços de seda azul. João Eduardo na platéia — enquanto a Gamacho, empastada de pó-de-arroz sob a sua mantilha valenciana, vibrando com uma graça decrépita o leque de lantejoulas, garganteava malaguenhas agudas — não se fartou de contemplar, de desejar Amélia. À saída veio cumprimentá-la, oferecer-lhe o braço até a Rua da Misericórdia; a S. Joaneira, a Sra. D. Maria da Assunção seguiam atrás com o tabelião Nunes.
— Então gostou da Gamacho, Sr. João Eduardo?
— A falar-lhe a verdade nem sequer reparei nela.
— Então que fez?
— Olhei para si, respondeu ele resolutamente.
Ela parou imediatamente, disse com a voz um pouco alterada:
— Onde vem a mamã?
— Deixe lá a mamã!
E João Eduardo, então, falando-lhe junto do rosto, disse-lhe "a sua grande paixão". Tomou-lhe a mão, repetia todo perturbado:
— Gosto tanto de si! Gosto tanto de si!
Amélia estava nervosa da música, do teatro; a noite quente de Verão, com a sua vasta cintilação de estrelas tomava-a toda lânguida. Abandonou a mão, suspirou baixinho.
— Gosta de mim, não é verdade? perguntou ele.
— Sim, respondeu ela, e apertou os dedos de João Eduardo com paixão.
Mas, como ela pensou, "fora decerto um fogacho" — porque, dias depois, quando conheceu mais João Eduardo, quando pôde falar livremente com ele, reconheceu que não tinha nenhuma inclinação pelo rapaz. Estimava-o, achava-o simpático, bom moço; poderia ser um bom marido; mas sentia dentro em si o coração adormecido.
O escrevente porém começou a ir à Rua da Misericórdia quase todas as noites. A S. Joaneira estimava-o pelo seu "propósito" e pela sua honradez. Mas Amélia ia-se mostrando "fria": esperava-o à janela pela manhã quando ele passava para o cartório, fazia-lhe olhos doces à noite, — mas só para o não descontentar, para ter na sua existência desocupada um interessezinho amoroso.
João Eduardo um dia falou à mãe em casamento:
— Como a Amélia quiser, eu por mim... disse a S. Joaneira.
E Amélia, consultada, respondeu ambiguamente:
— Mais tarde, por ora não me parece, veremos.
Enfim acordou-se tacitamente em esperar, até que ele obtivesse o lugar de amanuense do governo civil, rasgadamente prometido pelo doutor Godinho — o temido doutor Godinho!
Assim vivera Amélia até a chegada de Amaro: e, durante a noite, estas recordações vinham-lhe por fragmentos, como pedaços de nuvens que o vento vai trazendo e desmanchando. Adormeceu tarde, acordou já o sol ia alto: e espreguiçava-se, quando ouviu dizer a Ruça na sala de jantar:
— É o senhor pároco que vai sair com o senhor cônego; vão à Sé.
Amélia saltou da cama, correu à janela em camisa, ergueu uma pontinha da cortina de cassa, olhou. A manhã resplandecia: e o padre Amaro pelo meio da rua conversando com o cônego, assoava-se ao seu lenço branco, muito airoso na sua batina de pano fino.
VI
Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente em comodidades, Amaro sentiu-se feliz. A S. Joaneira, muito maternal, tomava um grande cuidado na sua roupa branca, preparava-lhe petiscos, e o "quarto do senhor pároco andava que nem um brinco"! Amélia tinha com ele uma familiaridade picante de parenta bonita: "tinham calhado um com o outro", como dissera, encantada, D. Maria da Assunção. Os dias iam assim passando para Amaro, fáceis, com boa mesa, colchões macios e a convivência meiga de mulheres. A estação ia tão linda que até as tílias floresceram no jardim do Paço: "quase milagre!", disse-se: o senhor chantre, contemplando-as todas as manhãs da janela do seu quarto, em robe-de-chambre, citava versos das Éclogas. E depois das longas tristezas da casa do tio da Estrela, dos desconsolos do seminário e do áspero Inverno na Gralheira — aquela vida em Leiria era para Amaro como uma casa seca e abrigada onde o alegre lume estala e a sopa cheirosa fumega, depois duma noite de jornada na serra, sob trovões e chuveiros.
Ia cedo dizer a missa à Sé, bem embrulhado no seu grande capote, com luvas de casimira, meias de lãs por baixo das botas de alto cano vermelho. As manhãs estavam frias: e àquela hora só algumas devotas, com o mantéu escuro pela cabeça, rezavam aqui e além, ao pé dum altar envernizado de branco. Entrava logo na sacristia, revestia-se depressa batendo os pés no lajedo, enquanto o sacristão, pachorrento, contava "as novidades do dia".
Depois, com o cálice na mão, de olhos baixos, passava à igreja; e tendo dobrado o joelho rapidamente diante do Santíssimo Sacramento, subia devagar ao altar onde duas velas de cera esmoreciam com uma claridade pálida na larga luz da manhã, juntava as mãos, murmurava, curvado:
— Introibo ad altare Dei.
— Ad Deum qui laetificat juventutem meam, resmungava, num latim silabado, o sacristão. Amaro já não celebrava a missa como nos primeiros tempos, com uma devoção enternecida. "Estava agora habituado", dizia. E como não ceava, e àquela hora em jejum, com a frescura cortante do ar, já sentia apetite, engrolava depressa, monotonamente, as santas leituras da Epístola e dos Evangelhos. Por trás o sacristão, com os braços cruzados, passava vagarosamente a mão pela sua espessa barba bem rapada, olhando de revés para a Casimira França, mulher do carpinteiro da Sé, muito devota, que ele "trazia de olho" desde a Páscoa. Largas réstias de sol caíam das janelas laterais. Um vago aroma de junquilhos secos adocicava o ar.
Amaro, depois de recitar rapidamente o ofertório, limpava o cálice com o purificador; o sacristão, um pouco vergado dos rins, ia buscar as galhetas, apresentava-as, curvado — e Amaro sentia o cheiro do óleo rançoso que lhe reluzia no cabelo. Naquela parte da missa, por um antigo hábito de emoção mística, Amaro tinha um recolhimento sentido: com os braços abertos, voltava-se para a igreja, clamava, com largueza, a exortação universal à oração — Orate, fratres! E as velhas encostadas aos pilares de pedra, com o aspecto idiota, a boca babosa, apertavam mais as mãos contra o peito, de onde pendiam grandes rosários negros. Então o sacristão ia ajoelhar-se por trás dele, sustentando ligeiramente com uma das mãos a capa, erguendo na outra a sineta. Amaro consagrava o vinho, levantava a hóstia — Hoc est enim corpus meum! — elevando alto os braços para o Cristo cheio de chagas roxas sobre a sua cruz de pau preto; a campainha tocava devagar; as mãos batiam concavamente nos peitos; e no silêncio sentiam-se os carros de bois rolando, com solavancos, sobre o largo lajeado da Sé, à volta do mercado.
— Ite, missa est! dizia Amaro enfim.
— Deo gratias! respondia o sacristão respirando alto, com o alívio da obrigação finda. E quando, depois de ter beijado o altar, Amaro vinha do alto dos degraus dar a benção, era já pensando na alegria do almoço, na clara sala de jantar da S. Joaneira e nas boas torradas. Àquela hora já Amélia o esperava com o cabelo caído sobre o penteador, tendo na pele fresca um bom cheiro de sabão de amêndoas.
Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia à sala de jantar, onde a S. Joaneira e Amélia costuravam. "Estava aborrecido embaixo, vinha um bocado para o cavaco", dizia. A S. Joaneira, numa cadeira pequena, ao pé da janela, com o gato aninhado na roda do vestido de merino, cosia de luneta na ponta do nariz. Amélia, junto da mesa, trabalhava com o cesto da costura ao lado; a cabeça inclinada sobre o trabalho mostrava a sua risca fina, nítida, um pouco afogada na abundância do cabelo; os seus grandes brincos de ouro, em forma de pingos de cera, oscilavam, faziam tremer e crescer sobre a finura do pescoço uma pequenina sombra; as olheiras leves cor de bistre esbatiam-se delicadamente sobre a pele de um trigueiro mimoso, que um sangue forte aviventava;