Contos. João da Câmara
com a cimalha pintada de azul, a porta vermelha, a nogueira a que se encosta a vide cheia de cachos tentadores, e uma volutazinha de fumo azulado a subir, a subir até desvanecer-se, signal da recompensa depois do dia de trabalho, a boa ceia quente, o lume que desenregela. Seguindo sempre em frente, passado um quarto d'hora, estaria nos braços da mãe, seccando-lhe as lagrimas, trazendo-lhe o coração que levára.
E continuava em duvidas! Pois a quem mais do que á mãe queria elle?
E por fim quando se resolveu… tomou para a esquerda.
Pobre mãe!
O BAILE DOS VELHOS
Houve esta noite festa rija em casa dos padeiros.
Casados ha cincoenta annos, festejaram com estrondo o anniversario do casamento. E não pensem que por não haver lá gente moça a festa desmereceu. Isso sim! Das oito á meia noite, nem o Bento das mãos largou a guitarra, nem faltaram pares no meio da casa.
Ficou logo combinado, mal o Antonio Pataco falou n'aquillo: – quem não foi convidado para a boda, tambem não dançou n'aquella noite, nem comeu os leitões assados. Então é que se viu como as mulheres se atiram pela velhice fóra com alma e coragem; eram doze nem mais nem menos, e os homens apenas seis, todos muito atrapalhados, (tanto mais que o Prior não contava) tendo que attender a tanta senhora, não querendo escandalisar nenhuma.
A casa, segundo contam, estava um brinco. Começava logo pela illuminação. Das vigas do tecto pendiam sete candeias e, como reforço, ardiam quatro vellas sobre as mezas dos cantos. Á roda da casa, no friso caiado, tinham disposto a loiça branca e na chaminé um grande tronco de asinho ardia, rodeado de piorno, fazendo passar clarões vermelhos na bateria de cobre, disposta, como um tropheu, do outro lado da casa.
Quando um homem pensa que, além d'aquella riqueza, o Antonio Pataco tinha mais do que outro tanto em serviço na cosinha, e que tudo aquillo não é nada em comparação com o muito que nós sabemos que elle tem, haverá rapaz na aldeia que mereça a linda neta tão branquinha e tão rica, fechada provisoriamente n'aquella noite n'um dos quartos do sotam da casa?
O prior velho foi quem presidiu á festa como é de ver. Está cego de todo, coitado; mas, apezar d'isso e de andar algum tanto acabrunhado desde que não póde ler no missal, attendendo a ter sido quem os casára, lá se arrastou conforme pôde, e não foi talvez dos que menos se divertiram. Abordoado á grossa bengala de castãosinho de prata, amarellada pelo uso, tremendo na mão d'elle, assistiu a toda a festa, até de madrugada, sacudindo em ar de approvação a cabeça muito calva, onde apenas meia duzia de cabellos brancos muito compridos, esvoaçavam, tenuissimos, no ar agitado.
Até á meia noite não se fez outra coisa senão dançar e mais dançar.
O Bento não se cançou de tocar na guitarra, apresentando, como pretexto para não se mexer o tamanho do ventre, que vae tomando com a edade proporções medonhas. Alguns quizeram insinuar que eram as pernas que lhe começavam a enfraquecer, mas logo desarmou a intriga, atirando um pontapé, que acertou, como por acaso, nas canellas do mestre-escola.
A pobre guitarra, velha tambem, rachada e fanhosa, não se lembrou senão de fandangos antigos, e era de vêr como aquelles bons velhos, talvez enganados pelo som d'aquellas cordas que os transportava cincoenta annos para traz, ouvindo aquella musica alegre, que lhes trazia recordações risonhas da mocidade, crearam novas forças e, cheios de animação, dançaram, no meio dos bravos, ligeiros como arveloas, sorrindo-se como se ainda se namorassem, como, havia meio seculo, se sorriam e namoravam.
Quem abriu o baile foi o padeiro, dançando com a mulher.
– Ahi, rapaz! gritou-lhe o Bento.
Mas era lá preciso que o animassem! Com o seu bello calção de briche fino, o collete verde de botões de vidro, as boas polainas hespanholas, parecia ter voltado aos trinta annos, bem aprumado, de cabeça erguida, arqueando o peito, baloiçando os braços, fazendo estalar os dedos.
A mulher custou-lhe mais por causa do rheumatismo; mas, apezar de muito dobrada, lá se animou. Levando aquillo muito a serio, dançou perto d'um quarto de hora, diante do marido, que sapateava, tentando recordar as habilidades, que n'outros tempos o tornaram falado por todas aquellas aldeias.
E só a idéa d'aquella saiasinha amarella, remexendo-se, tremula, por toda a casa, perseguida por aquelle velho cheio de cabellos brancos e de rugas, fazia rir ás gargalhadas estrondosas o Prior, que não via nada e lançava o olhar incerto, ora para um lado, ora para o outro, n'um menear constante de cabeça.
– Está seculo e meio dançando, disse o mestre escola com a gravidade do officio.
– E muitos pósinhos, e muitos pósinhos! accrescentou o Prior, continuando a rir.
Todos applaudiam. O Bento na guitarra apressava o andamento.
– Não posso, não posso mais! declarou a velhinha deixando-se caír esfalfada num tropeço, ao pé da lareira.
– Quem vem então? perguntou o Antonio, limpando o suor.
E ficou parado no meio da casa, de mãos na cintura, olhar altivo, esticando a perna, com um sorriso orgulhoso.
Muito se dançou n'aquella noite, em casa dos padeiros!
Mas o melhor foi a ceia.
O Bento esteve famoso. De mais a mais o Antonio, muito naturalmente de proposito, sentou-o logo entre a Marianna Coxa e a Maria do Rosario. Imaginem!
Todos se lembravam ainda de quando ellas, á volta da fonte, se arranharam, por detraz do moinho, no meio dos cacos das bilhas partidas.
Agora, muito tremulas, muito engelhadas, de um lado e outro d'aquelle coração de bronze, mastigavam lentamente, enchendo as bochechas, de beiços muito recolhidos, tocando quasi com as barbas para cima nos narizes para baixo.
Emquanto se tomou a canja, houve um silencio quasi geral, apenas interrompido pelos recados do padeiro á velha criada Mathilde ou pelos convites aos assistentes.
– O cangirão. Vai já deitando. Começa aqui pelo sr. Prior. Mais uma colherinha de canja, tia Ignez?
E os velhos, todos em volta, sopravam longamente com as colheres ao pé da bocca e sorviam depois o caldo, com uns apitosinhos gulosos, fechando os olhos; alguns amolleciam na canja as codeas de pão, e o padeiro, de pé, observando, com a concha mettida na enorme terrina, lançava em redor um olhar attento de bom dono de casa, prompto para dar mais a quem pedisse.
– Senta-te e come, disse-lhe a mulher. Que afflicção!
– Sente-se e coma; isso mesmo! Entre rapazes não ha cerimonias. Quem quizer mais peça por bocca, gritou o Bento, estendendo o prato.
Mas já então a Mathilde vinha trazendo os assados.
Os convidados limpavam os beiços á toalha e os homens despejavam os copos para abrir o appetite.
Então começou tudo a falar. Só o professor é que não tomou parte nas discussões, por não perder a gravidade. Chamando a si uma travessa, onde um magnifico perum ostentava a opulencia das carnes aloiradas, espetou-lhes o garfo e, pondo as lunetas redondas na ponta do nariz afiladissimo, depois de attentamente ter examinado o fio da faca, principiou, cheio de sua pericia, a trinchar, seguindo com olhares gulosos os bocados, que iam cahindo.
O cangirão já voltára por tres vezes á cosinha, quando a padeira começou a servir o pato bravo. E da pinha enorme de arroz, que tremia na colher, iam caindo os baguinhos na toalha.
O Bento repetia todos os pratos e desabotoava os botões do collete.
Foi então que, depois d'um segredo, que o Antonio Pataco lhe disse ao ouvido com ar de muito misterio, a Mathilde sahiu, entrando pouco depois com os leitões e trazendo debaixo dos braços umas poucas de garrafas, que poz sobre a meza defronte do padeiro.
– Sabem, meus senhores?.. Garrafas lacradas por mim no dia do meu casamento. Os seus copos, façam favor… Ora adeus! O que é isso, sr. professor? O copo maior… Então? O vinho é o sangue dos velhos.
O sangue não sei, a lingua é com certeza.