Contos. João da Câmara
aquelle ar que o refrescava agora, mas que lhe trouxe não sei que recordações.
Olhou para a filha e viu-a crescida, com os peitos desenvolvidos, o pescoço muito bem torneado, o cabello farto, enrolado no alto em duas tranças; viu-lhe a carnadura branca, sadia e forte.
O rouxinol continuava a cantar e a pernada cheia de flores teve um movimento languido, vergando a um suspiro da noite.
O mestre-escola tomou uma respiração funda e fez um movimento d'hombros resignado.
– É preciso casar-te, não ha remedio.
Como por miudos se lembrava de toda a scena que tivera com o pae e dos conselhos que então lhe ouvira! Bem o previra elle que o José Miguel a havia de abandonar um dia, não porque fosse mau, mas porque era leviano, que havia de deixar a mulher como deixava agora as namoradas, que tinham sido, uma apoz outra, todas as raparigas da aldeia.
Que mal empregadas lagrimas ella chorára, até que afinal o pae consentira no casamento!
Quantas vezes, feitas as pazes, tinham os trez commentado aquella historia!
Um dia o mestre-escola fôra pelo Prior e outros convidado para uma caçada a que iria tambem o José Miguel.
Foi este quem, bastante atrapalhado, veio pela manhã bater-lhe á porta.
– Prompto, sr. Eustachio? Olhe que o Prior, ha mais de um quarto d'hora que está á sua espera no adro!
– Lá vou! lá vou! gritou de dentro o Eustachio.
E appareceu pouco depois, com a sua bota alta branca e o bonnet de pala verde, que usava havia dez annos.
– Adeus! disse ao José Miguel com máu modo.
– Sr. Eustachio…! respondeu este, cumprimentando-o, entre ironico e atarantado.
E, erguendo os olhos, entreviu na unica janella do primeiro andar, detraz das folhas da roseira, uma carinha muito bonita, mas muito triste, que lhe sorria por entre muitas lagrimas.
– Vamos! disse o Eustachio, pondo-se a caminho e olhando de revez para o outro.
– Deixa estar, grande patife! ia pensando o José Miguel. Ainda hoje m'as has de pagar!
Chegaram ao adro, onde o Prior e mais dois amigos os esperavam com impaciencia.
Depois de muitas recriminações e descomposturas, a que o Eustachio respondeu com desculpas gaguejadas, começaram ali mesmo a caçada, porque a egreja era no fim da aldeia e no sopé d'um cabeço predilecto das perdizes.
Vinte minutos depois, o cão do mestre-escola parava, e este, com o dedo no gatilho, esperava que as perdizes levantassem.
– Entra, cão!
Ouviram-se dois tiros; mas as perdizes foram-se voando com saude. O velho caçador fez um movimento de máu genio.
Então o José Miguel, collocado um pouco mais longe, apontou serenamente, descarregou por duas vezes a espingarda, e as perdizes, depois de por um instante haverem batido convulsamente as azas, inclinaram as cabeças e deixaram-se cahir a prumo, como coisas inertes.
– Que é lá isso? perguntou o Eustachio.
– O sr. não vê? disse-lhe o José Miguel, mostrando-lhe a caça morta. São duas perdizes.
E depois baixinho para o Prior, mas não tão baixo que o Eustachio o não ouvisse:
– E dois bigodes. Elle que os vá contando.
E contou-os, e não foram poucos.
Felizmente o Eustachio não era de reservas. O rapaz enthusiasmou-o.
– Bravo! dizia elle ao fim da tarde, com o olhito a luzir, o que era tambem d'umas beijocas a mais na borracha do Prior.
E depois, muito amigavelmente, pondo-lhe a mão no hombro:
– Sabes que tens quasi uma riqueza n'essa espingarda?
Com que saudades a Marianna recordava esse momento em que, pela primeira vez, ouvira da bocca do pae um elogio ao namorado!
– Mas isto não obsta. Não quero! teimava ainda o Eustachio. Aquillo é um cabeça no ar. Um dia deixa-te e ficas peor do que viuva!
Afinal consentira. Que lhe havia de fazer?
O José Miguel acirrára-se com aquella resistencia e, em vez de abandonar a rapariga, como fizéra ás outras, cada vez se mostrava mais assiduo junto da filha do mestre-escola. A Marianna definhava-se, que era um dó vel-a.
O Eustachio, bem contra vontade, não teve outro remedio, consentiu.
O bom tempo tem azas.
Com os olhos fitos na casa pequenina, que alvejava no alto da serra, a triste chorava amargamente, lembrando-se d'aquelles primeiros mezes de casada e das alegrias que tinha, quando ouvia ao longe os latidos do Valente, que voltava da caça.
Logo tirava da arca a toalha de linho muito alva, riscada pelo ferro; puxava a mesa para defronte da janella, que uma parreira sombreava; dispunha-a com muito cuidado, o logar d'ella e o d'elle, um defronte do outro, o cangirão cheio de vinho, o pão alvo partido em quartos, os pratos de fructa, que perfumavam a casa.
Então o Valente entrava muito bruto, saltando, muito desordeiro, querendo que lhe abrissem a porta do pateo, para onde logo sahia a correr, enterrando o focinho na panella cheia de caldo e de grandes bocados de pão de munição.
O José Miguel muito estafado, atirava para cima da arca a bolsa de caça, sorria ao ver aquelles arranjos e, enchendo a caneca do vinho muito fresco, bebia-o depois, de uma vez, d'olhos continuando a sorrir, soltando ao acabar um bello ah! de satisfação.
– Vamos a isto mulher, vamos a isto! dizia approximando da mesa a grande cadeira de páu santo.
E, todo olhares gulosos, muito sorridente, de beiços estendidos, destapava a terrina e enterrava a concha nas sopas.
Emquanto ia comendo, vinham as historias do dia.
Ella pouco podia adeantar: estivera em casa trabalhando, não sabia nada de novo.
Elle então contava façanhas do Valente, que, saciada a fome, muito sujo, muito lambusado, sentado a um canto, d'olhos meio-cerrados, esperava com paciencia o fim do jantar e a codea de queijo da sobremesa.
Estava muito velho, coitado do bicho! mas ainda nenhum lhe chegava.
Depois queixava-se da caça. As perdizes por aquelle calor andavam levadas da breca! O que elle andára por aquelles mattos!
A mulher, sentada defronte d'elle, ria muito contente, mostrando-lhe os dentes muito brancos entre os labios vermelhos, com duas covinhas aos cantos.
Pois as perdizes andavam assim como elle dizia, e estava a rede ali tão cheia!
– Mas vê lá se outro consegue o mesmo, dizia o José Miguel todo orgulhoso. É que d'aquillo e d'estas não ha outro que as tenha na aldeia.
E apontava para a espingarda e batia nas barrigas das pernas.
– São de ferro!
O mestre-escola vinha muita vez, depois do jantar, ter com elles á sobremesa, beber um copo de vinho e depenicar no queijo.
Caçador velho, muito conhecedor d'aquelles terrenos, gostava de dar conselhos ao genro, que o escutava attencioso.
Isto não obstava a que, sahindo juntos, o José Miguel, fizesse enfurecer o sogro, matando-lhe a caça que este errava.
– Ora anda lá, meu velho, resmungava muito alegre, apanha lá mais este, para a conta.
Agora o José Miguel continuava a sahir todas as manhãs, mas só recolhia alta noite. Ás vezes, nem recolhia, e ella, coitadita, levava as noites a chorar.
Quando o marido sahia, punha-se á janella e via-o desapparecer por detraz da egreja, onde o sol nascente batia de chapa. Passados minutos, avistava-lhe o vulto, ao longe, na calva do pinhal. O Valente seguia-o cabisbaixo, triste,