Contos. João da Câmara

Contos - João da Câmara


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elevar-se no ar muito sereno da manhã um penachinho de fumo azulado, que logo se desfazia no azul do céu.

      Ella então deitava-se de bruços na cama, e chorava convulsamente.

***

      N'esse dia pela uma hora, o Eustachio entrou em casa da filha.

      – O teu homem?

      – Foi para a caça, respondeu a Marianna, sentando-se no leito e á pressa limpando as lagrimas.

      O mestre-escola trazia o bonnet de palla verde, a espingarda a tiracolo, o polvarinho e o chumbo. Não trazia a rede.

      – Bem. Deixa-te estar. Escusas de te incommodar. Deita-te, filha, que eu vou procural-o.

      A Marianna quiz retel-o, extranhando-lhe os modos.

      – Talvez o não encontre. Sabe Deus onde elle pára!

      – Sabe-o Deus, sei-o eu e sabe-o a aldeia em peso, que é uma vergonha! respondeu o Eustachio, apontando com a espingarda para o alto do pinhal. Olha, sabes o que vou fazer?

      – Ó meu pae!.. disse a rapariga, levantando-se do leito e vindo segurar-lhe os braços.

      – Deixa-me! Muito tenho eu esperado! Não teem mais que o castigo que ambos merecem. Tu sabes quem ella é?

      A Marianna disse que não com a cabeça.

      Mas não havia de saber!..

      – A Maria da Escusa, aquella cigana, que, não contente com ter dado cabo do marido, morto de desgostos, quer fazer outro tanto ao teu homem… e a ti! Mas eu vou lá e mato-a, mato-a como quem mata uma loba!

      E, apertando, nervoso, a espingarda contra o peito, saiu arrebatadamente.

      A Marianna, cheia de susto, sem forças para seguir o pae, sem forças para gritar, deixou-se cahir no leito, desmaiada quasi, sem animo para pensar na desgraça, que lhe estava acontecendo.

***

      Assim esteve por muito tempo. Despertaram a afinal uns latidos alegres, tão conhecidos d'ella. Sentou-se no leito. Os latidos approximaram-se, e por fim o Valente rompeu pelo quarto, saltando, cheio de fome, pedindo o jantar, a arranhar na porta do pateo.

      Ouviu então a voz do José Miguel. Vinha conversando com o pae e o que diziam não era coisa triste, porque ambos riam ás gargalhadas.

      A Marianna correu, muito chorosa, até á porta, e, muito excitada, cahiu soluçando nos braços do marido.

      – O que é isso? o que é isso? perguntava o Eustachio, tambem com um nósito na garganta. Choras então, porque eu te trouxe o homem? Se adivinhasse o disparate, tinha o deixado lá ficar.

      – Então, mulher, então? Que tens tu? dizia o José Miguel muito commovido.

***

      Passada meia hora, arranjado o jantar á pressa, sentaram-se todos á mesa.

      A curiosidade, que nem um dito, uma allusão deram motivo para saciar, sorria nos olhos vivos da Marianna.

      Que se haveria passado?

      Mas, quasi ao fim do jantar, o mestre-escola, que estava conversando muito animadamente, enganou-se e, querendo beber á saude da filha, pegou no copo d'agua; o José Miguel, muito lampeiro, antes que o sogro désse pela distracção, lançou-lhe mão ao vinho e bebeu-o de um trago.

      – Não é só na caça que se apanham bigodes sr. Eustachio.

      – Não, não, respondeu o velho. E tu que o sabes d'hoje…!

      O José Miguel fez-se muito vermelho, e, porque percebesse na mulher um sorriso em que a malicia apagára a tristeza, levantou-se da mesa e veio beijal-a muito.

      – Coitada da Marianna!

      – Então ella… enganou-te?

      – Porque falas n'isso? Que te importa? Que me importa?

      A curiosidade da Marianna ainda não estava satisfeita.

      – Com quem?.. Dize… Dize… Com quem?

      Então o mestre-escola, muito córado – era talvez da pinga? entendeu dever deixal-os sós, e sahiu a rir, com um arsinho trocista, muito contente, a esfregar as mãos.

      O PAQUETE

      Era no fim da azinhaga – uma azinhaga estragada pelas chuvas do inverno e tendo ainda marcada na lama secca a passagem do ultimo carro de bois. D'um lado e d'outro velhas piteiras misturavam a côr verde claro das largas folhas carnosas com o verde escuro, quasi negro, das silvas e pilriteiros; de espaço a espaço erguiam-se algum sobreiro decrepito, faias brancas e prateadas, loureiros embalsamando o ar com o cheiro forte e bom das longas folhas agudas.

      No fim erguia-se a casa com o seu aspecto senhoril.

      A hera apoderára-se do exterior e, aproveitando as fendas que o tempo abrira, espreguiçando-se sobre o leito do velho musgo amarello que revestia cada pedra da parede, ia unir as suas folhas delicadas aos cachos de arroz que desciam em elegantes pyramides das beiras do telhado.

      Uma pequena escada, seis ou sete degraus gastos, abalados, partidos, conduzia do pateo ao vestibulo do palacio.

      Sobre o portão, cuja tinta gretada pelo sol caíra pouco a pouco, ostentava-se, comido pelo tempo, o brasão da familia, sobre o qual ameaçava ruina uma grande coroa de conde transformada em coito de lagartixas.

      Os vidros ennegrecidos e apenas translucidos tremiam de velhice nos caixilhos de chumbo.

      Pelo pateo, nos intersticios das pedras, crescia livremente a erva, e a um canto um rallo juntava as estridulas melodias ao monotono coaxar das rãs do pantano visinho.

      O Conde estava na livraria sentado n'uma velha poltrona de coiro com pregos de metal. Tinha na mão um livro latino, que lia attentamente.

      A livraria era uma vasta sala alumiada por trez janellas de grande vão.

      Avistava-se ao longe a aldeia com seu campanario branco, suas casinhas bem caiadas, e os cimos dos choupos erguendo-se acima dos telhados e indicando a estrada que a atravessava conduzindo d'uma villa a outra.

      Entre as janellas e as portas estavam as estantes com os grandes in-folios amarellos, os grossos diccionarios e as obras classicas latinas, portuguezas e francezas.

      A parede fronteira ás janellas, por cima da chaminé de marmore branco, era occupada pelo retrato do avô do Conde. Era um homem alto, bem feito, sympathico. Estava vestido á epocha de D. João V. Tinha uma das mãos nos copos da espada, as suas commendas ao peito e uma sombra exquisita, forte, brutal, na metade do nariz do lado esquerdo. A moldura deixára caír o doirado e estava rendilhada pelo caruncho. A um canto uma aranha tecêra a teia e esperava pela presa, escondida n'um rasgão da tela.

      O sol descia e o Conde, para lhe aproveitar os últimos raios, puchára a cadeira para o vão da janella e, com o livro sobre o joelho, o cotovello sobre a perna traçada e a testa encostada á mão, lia attentamente uma passagem de Suetonio.

      O crepusculo foi invadindo a sala. O sol, depois de ter com o ultimo raio brincado um instante na testa veneranda do avô commendador, desceu para detraz do cabeço, e as grandes sombras dos montes fundiram-se pouco a pouco n'uma tinta geral.

      O Conde fechou o livro sobre o index e poz-se a contemplar a aldeia.

      O vento do norte entrando pelas fendas das paredes sibillava tristemente no corredor, os vidros zuniam nos caixilhos de chumbo, as aves nocturnas, que habitavam as vastas chaminés do palacio, começavam a piar e aos ouvidos do Conde chegava a alegria da aldeia como nota extranha d'uma lingua esquecida.

      Meiados de novembro, as noites eram frias.

      O Conde olhou tristemente para as janellas das casas dos lavradores alegremente illuminadas pelo fogo vivo das lareiras, e, estremecendo de frio dentro da velha sobrecasaca parda, levantou-se, tocou uma campainha e, mettendo as mãos nas algibeiras, começou passeando pela sala.

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