Contos. João da Câmara

Contos - João da Câmara


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teve de pedir auxilio ao dono da casa para impôr silencio á velhada.

      – Meus senhores… começou.

      Mas as velhas não se continham; haviam de palrar por força. Mal o mestre-escola, com ar choroso, começou falando de tantos que faltavam áquella festa, puzeram-se ellas a gritar:

      – Basta! Basta! Não queremos tristezas!

      Deus me perdõe, mas está me parecendo que o vinho lhes subira ás cabecinhas brancas.

      Não sei se o professor tambem desconfiou da coisa. Muito offendido, todo vermelho, sem poder dominar com a sua fanhosa voz de falsete a immensa berraria, pousou o copo sobre a meza e começou a atacar o queijo, resmungando.

      O Bento é que teve as honras da noite, contando historias da sua mocidade.

      Rapaz perfeito, dono de tres moinhos, era mais a mim, mais a mim, todas o queriam.

      – E mal sabes tu, Antonio, uma coisa. A tua Josepha tambem me esperava á porta, quando eu passava, atirando-me cada olhadella!

      – Que é lá isso? perguntou o Antonio, erguendo-se, entornando o copo sobre a meza e deixando correr em dois fios pelas rugas do queixo o bochecho que tinha na bocca.

      Como o Antonio tem mau genio, a questão esteve por um triz a azedar-se.

      – Ainda tu acreditas n'aquelle traste! disse a Josepha levantando a mão e como que ameaçando o Bento d'uma tremenda bofetada.

      – É verdade, sim senhores, é verdade! teimava o Bento, estirado por cima da meza, de collete já todo desabotoado.

      Os outros velhos protestavam, rindo muito. O Prior serenava o Antonio. Elle bem devia ver que tudo aquillo era troça e que o Bento estava a brincar.

      – E quem sabe? continuou este. Talvez que você não festejasse hoje o anniversario do seu casamento, se eu n'esse tempo não andasse meio parvo por causa ali da tia Domingas.

      – Anh? perguntou a tia Domingas, approximando da orelha o concavo da mão.

      – Que andou meio parvo por vocemecê, explicou o Prior a berrar.

      A tia Domingas, um poucochinho tonta, engoliu com muito esforço um grande bocado de leitão, que ruminava havia um bom quarto de hora, e disse toda commovida:

      – Não me fale n'esse tempo, sr. Bento, não me fale n'esse tempo!

      E durante toda a ceia houve sempre alegria, menos na cara do mestre-escola.

      – Que tem, sr. Matheus? perguntou-lhe o Prior. Ha muito que lhe não oiço a voz.

      – Vossa Reverencia bem sabe que nunca fui…

      – Sei, sei, interrompeu o Prior. Aqui a sr.ª Bernarda que diga o que vocemecê foi.

***

      Pela madrugada, quando já as cotovias cantavam pelos campos e as figas das janéllas luziam como fios de cristal, levantaram-se todos para sahir.

      O Prior cabeceava, havia um bocado, e o Bento, depois de muito contar e muito mentir, assentara sobre o peitilho bordado a segunda barba rubicunda, olhando por baixo, com olhar acarneirado, cheio de meiguice avinhada e de somno mal combatido.

      Havia longos silencios e bocejos profundos.

      Então as velhas lembraram-se de, como havia cincoenta annos, acompanhar a Josepha ao quarto.

      E pelo corredor a Josepha, com a sua saiasinha amarella, bordada, com largas fitas de velludo preto, muito envergonhada, era seguida pelo Antonio, que, por brincadeira, queria impedir que os amigos viessem, dizendo que não era costume.

      Pararam todos á porta.

      Pela janella entreaberta a luz fria da manhã entrava no quarto, enchendo-o d'uma serena meia claridade.

      O quarto estava na mesma: o oratorio defronte da porta sobre a commoda de pau santo, á direita o bahu encoirado, tapado com uma chita de ramagens, ao fundo o leito antigo, muito alto, coberto com uma colcha escarlate e onde, uma ao lado da outra, muito chegadas, duas almofadas bordadas, pequeninas, alvejavam na penumbra.

      Havia cincoenta annos!

      A OUTRA

      Era em fins d'agosto, á hora do meio dia.

      Havia um instante, que, na torre pequenina da egreja, o sacristão, com a cabeça abrigada do sol por um grande lenço de fundo vermelho com ramagens amarellas, tinha feito soar vagarosamente as ave-marias.

      Hora do descanço. Alguns dos que trabalhavam mais perto recolheram a casa para jantar e socegar um pedaço, durante a sesta.

      Depois tudo pareceu adormecer na aldeia. Junto aos muros, enfileiradas todas na nesgasinha de sombra, as gallinhas dormitavam; os passaros nos salgueiraes, que sombreavam o ribeiro, tinham emmudecido. No interior das casas nenhum rumor, por entre a folhagem nenhuma viração. Até as carroças, nos pateos, com os varaes aprumados, pareciam, como n'um espreguiçamento, dispôr-se para o somno.

      O sol quasi a prumo dardejava sobre a aldeia os raios quentissimos, reverberados pelas paredes caiadas de fresco e pelos telhados novos vidrados, que pareciam em braza, e atravessava com elles as ramarias, enchendo o ribeiro de manchas movediças, multiformes, cheias de scintilações, como pedacinhos de metal.

      Era aquella a hora a que d'antes costumava recolher a casa o José Miguel, o melhor caçador da aldeia, com a rede quasi a trasbordar, tão cheia a trazia sempre de perdigotos e laparos.

      Ainda elle vinha longe, já se ouviam os latidos alegres do cão, correndo na frente.

      Então a mulher, depois de haver posto a mesa, vinha para o limiar da porta, encostava-se á hombreira, e punha-se á espera, toda risonha, feliz, fresquinha como uma flôr, com o seu vestido de linho muito engommado.

      Os que passavam iam-lhe dando as boas tardes.

      – Não tarda ahi, diziam-lhe cumprimentando-a. E é como sempre: bolsa cheia e cartuxeira vasia.

***

      Tempos!.. Tempos!

      Havia quasi um mez que a pobre Marianna debalde esperava o marido áquella hora.

      Agora, quando ouvia soar as ave-marias, vinha encostar a testa aos vidros da janella e, com as faces incendiadas, o ouvido attento, fitando os olhos numa casa que alvejava ao longe sobre a serra, deixava correr em fio as lagrimas silenciosas.

      E os que passavam, recolhendo ás casas, olhavam para ella com um modo tão triste, que ainda mais a entristecia, e iam dizendo uns para os outros: – Coitadinha!

***

      O que lhe custava…! E quanto mais, ao recordar-se do outro verão que passára!

      Para aquillo tinha casado, para mal decorrido um anno, um anno pouco mais, ali se vêr sósinha, chorando o marido que lhe fugira!

      Porque assim fôra rebelde aos conselhos do pae? Bem lh'o tinha elle prégado no proprio dia em que dera por aquelles amores!

      O pobre mestre-escola, ouvindo-a conversar uma noite, á porta da rua, viera buscal-a por um braço, arrastára-a pela escada até ao quarto lá em cima, e ali, meneando a cabeça, de braços cruzados, lançando chispas pelos olhos, dissera-lhe apenas: – Senhora!

      E ella começara a chorar e logo elle, ternissimo e afflicto, a enchera de beijos.

      Ainda não pensára n'aquillo…! Pois tão nova ainda, havia de assim deixal-o? E então por quem? Pelo José Miguel, um valdevinos, um doido, um conquistador!

      Recordára-lhe a morte da mãe que a deixára com trez annos entregue a elle, o que elle soffrera, os cuidados de que a rodeara, a educação que lhe dera.

      Era á noite, noite muito serena, cheia de murmurios misteriosos, que se elevavam dos campos n'uma grande serenidade. Ouvia-se ao longe a queda das aguas do ribeiro e o rodar das azenhas. A janella estava aberta e lá de fóra vinham perfumes quentes, fortes, no bafo carinhoso da primavera.

      Junto da porta crescia uma roseira, que mettêra para dentro do quarto uma pernada insubmissa, toda cheia de cachos de rosas pequeninas. Um rouxinol cantava no salgueiral,


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