Viriatho: Narrativa epo-historica. Braga Teófilo
o centro da área de defeza, e o refugio nos assaltos da guerra inimiga. Essas montanhas eram cercadas de muralhas formadas por grandiosos blocos graniticos, e escavadas em fundos subterraneos, em que se depositavam cereaes e comestiveis, e com cisternas para guardar as aguas pluviaes, tendo além d'isso um escadorio interior e reservado que dava escapula a grande distancia, em geral á beira de um rio, para o caso de ser tomada a fortaleza. Alli é que residia o presidente ou chefe das tribus que viviam em volta do Castro; e pela contagem de todas as familias formavam uma população de mais de dez mil individuos. Era a esse conjuncto, que se dava o nome de Contrebia; os seus chefes ou regedores, eram designados como regulos e duces pelos romanos, que comparavam estes agrupamentos lusitanos com as phraetrias gregas. Como não havia ordem de successão n'este poder presidencial, resultavam conflictos e rixas, que se mantinham por odios de familias, e até de tribus que se hostilisavam, aproveitando do enfraquecimento d'estas dissidencias o invasor romano.
Agora parecia, que uma intelligencia da missão dos Castellãos se revelára subitamente com o conhecimento da derrota de Vetilio; e as tribus, suscitadas pela vista das varas dos lictores, reclamavam que sahissem da inacção; que prestassem o seu apoio ao extraordinario Cabecilha, o vingador da matança de Galba. Constava que Viriatho, depois da sua victoria se recolhera á cidade de Toletum, preparando-se para novo combate ao Pretor que em breve chegaria de Roma com aguerrido exercito; resolveram todos esses chefes dirigirem-se a Toletum, levando ao pescoço os seus colares de ouro, como a insignia do poder senhorial; os seus braceletes, e lanças de prata com que presidiam aos sacrificios, e ao tribunal em que arbitravam sentenças sobre a vida e bens dos seus clientes ou ambactes. Partiram de todos os principaes cantões da Lusitania esses chefes acompanhados dos seus soldurios, ou guarda-costas valentões, para conhecerem Viriatho e lhe fallarem deliberadamente sobre a defeza e independencia do Territorio patrio.
Quando chegaram a Toletum, ainda Viriatho estava ausente, em uma exploração do territorio em que uma grandiosa Cava se prestava a imprevistos planos estrategicos, a que em futuro proximo teria de recorrer. Mas esses optimates cantonaes fôram encontrar na cidade a que se accolhera o exercito um grupo de homens, a que davam o nome honorifico de Anciãos, EN, e cuja palavra era inspirada e eloquente, por isso nas velhas linguas britonicas se exprimia por D-eirim. O povo, pelo costume antigo, chamava Endre a cada um d'esses homens, a quem acatavam como depositarios de um maravilhoso poder espiritual. E de facto os Endres eram propriamente os Antigos das tribus, os que conservavam a norma e sentido moral ou historico dos costumes; não formavam um corpo sacerdotal, nem mantinham a estabilidade de qualquer dogma theologico, mas possuiam um saber do passado, que os tornava oraculos vivos, conselheiros em todos os momentos arriscados, e conciliadores nas luctas intestinas e separatistas das varias tribus. Os Endres eram queridos do povo; despidos de toda a hypocrisia de classe e de odios doutrinarios dos sacerdocios, mofavam com o seu bom senso dos ritos e dogmas dos Druidas das Gallias, que elles desprezavam como macaqueadores das normas cultuaes da religião oriental dos Mobeds de Mithra, que se propagava pela Europa. O caracter e ascendente moral dos Endres estabelecia-se espontaneamente, quando o povo reconhecia em um Ancião das tribus o bom conselho, o saber pratico da vida, e o conhecimento das Tradições do passado; era então considerado como unico e como inspirado. Apontavam-se na Lusitania numerosos Endres, venerandos pela sua edade e saber: uns conservavam de memoria as Runas, ou propriamente as tradições locaes e da raça, e tendo na mão o ramo da Azinheira coberto de l'andras, presidiam ao sorteio annual das terras, evitando prudencialmente todos os conflictos; outros sabiam as Sagas, ou narrativas históricas, as Aravengas, que recitavam nos banquetes dos regedores cantonaes e nas festas consagradas a perpetuar successos memoraveis das tribus; outros conheciam as Sentenças da moral gnomica, Singvan, os aphorismos ou dictados, que exercem justa auctoridade nas resoluções da vida, porque condensam em breves phrases, ás vezes em um só verso, a experiencia de seculos; outros interpretavam o sentido dos velhos Symbolos, resolviam os mais intrincados Enigmas, e penetravam a materia numerica dos Quadrados magicos. D'entre todos esses Endres destacava-se um, pelo saber maravilhoso reunido em sua mente incomparavel; conhecia as mais vetustas tradições da terra da Lusitania, quando ella ainda se estendia até á falda occidental dos Pyreneos, as terras de Lez, que as convulsões do tempo fôram tornando cada vez mais ribeirinhas; só elle recitava Poemas de mais de seis mil annos de antiguidade; conhecia as cavernas e arcas cavadas nas rochas em que estavam occultos thesouros; e o que mais assombrava, tinha o segredo da leitura dos Quadrados magicos e dos Bastões runicos, que lhe davam uma fé inabalavel na independencia e missão vindoura da Lusitania. Esse Endre chamava-se Idevor, e quando passava pelos povoados saudavam-o com o titulo de Sanctum Anderu, e davam-lhe corôas feitas de ramos de azinheira. Pela sua paixão pelas antiguidades e liberdade da Lusitania se justifica o regosijo que em seu espirito provocou o apparecimento de Viriatho! Como a derrota por elle infligida ao Consul Vetilio o encheu de fervorosas esperanças! Idevor appresentou-se em Toletum com Endres de varias terras, e pelas conversas que entre si tiveram, facil lhes foi apurarem um conhecimento completo da personalidade do pastor Ouriato, que o povo acclamava agora pelo titulo de Viriatho. E vendo a chegada dos chefes das Contrebias, resolveram ir ao encontro d'elles, e dirigil-os no intuito de prestarem todo o auxilio ao destemido cabecilha.
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