Viriatho: Narrativa epo-historica. Braga Teófilo

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sobrevive ao crime,

      E escuta estes lamentos

      Da atroz desolação;

      Quem perdeu lá seus filhos,

      Os paes, entes queridos,

      O esposo, o irmão;

      Que se revoltem todos,

      Peitos sejam escudos,

      Lanças raios na mão!

      Soffrimento e opprobrio,

      A morte e a vingança

      Forçam á união!

      Vós, Povos da Callaecia,

      De Oretania, Beturia,

      Cynesia região;

      Robustos Carpetanos,

      Tartessios, desmembrados

      Da Lusonia nação!

      Que o mesmo odio nos una,

      Vingae mortos, e os vivos

      Salvae da escravidão!

      Reviva a Lusitania,

      Ensopada no sangue

      Da romana traição.

      V

      De todas aquellas povoações até onde chegára o rumor da horrente catastrophe, partiram homens audaciosos, movidos pela curiosidade para observarem com os seus olhos os despojos que restavam; alguns não voltaram mais aos seus lares, porque iam engrossando uma onda dos revoltados contra tamanha traição. Os que regressavam espavoridos contavam o assombro que lhes causára o vêr uma ampla campina coberta de cadaveres incompletamente carbonisados, em volta dos quaes uivavam lobos em numerosas alcateias, e aguias e abutres que esvoaçavam em bando sobre a vasta presa, cujo fetido os attrahira de longe. As calmas estivaes tornavam-se mais intensas, apressando a putrefação de tantos cadaveres; as fortes nortadas levavam até muito longe os miasmas, e n'uma e n'outra cidade da Lusitania appareciam ameaços aterradores da peste. Era a perspectiva de uma mais horrivel devastação, porque se não via o látego mortifero que flagellava os povos. Um pensamento de piedade pelos mortos occorreu suscitado pelas calamidades:

      – É certo que esses corpos insepultos reclamam dos vivos o cumprimento de um dever sagrado! Em quanto lhes não dermos sepultura condigna, suas almas andarão errantes diante de nós, perturbando-nos, perseguindo-nos até acordarmos do nosso desdem egoista. Carecemos para propria segurança de lhes darmos sepultura segundo o patrio e antigo costume, quando se encontra um morto n'um ermo ou n'uma encruzilhada. Que cada cidade, villar ou aldeia, faça suas peregrinações ao campo da matança, e seguindo a tradição da piedade, cada um arroje uma pedra para cima dos cadaveres até que se formem Montes Gaudios, que serão os tumulos venerandos dos nossos desventurados conterraneos.

      Segundo aquelle costume, vogou de cidade em cidade a ideia da funebre peregrinação, e não eram ainda bem passadas duas luas quando por toda a Lusitania se operára um movimento que ligava todas as povoações no mesmo affecto. Os mortos podiam agora mais de que os vivos, porque por via d'elles se uniam tribus até aquelle dia inconciliaveis, que iam visitar o campo da matança e lançar suas pedras para erguerem bem alto os Montes Gaudios, que deviam tornar-se não um simples monumento funerario, mas uma como torre de protesto e de eterna revolta. Muitos povos dispersos nas regiões de entre Durio e Minio, entre o Durio e o Tagus e mesmo os que se achavam para lá da banda de Traz dos Montes, desde a foz do Anas até ao Mar Cantabrico, adheriram á desolação dos Lusitanos, e mandaram tambem peregrinações ao campo da matança para que os Montes Gaudios attestassem aos vindouros que elles se consideravam formando parte d'este valente e activo povo ribeirinho que dos seus portos de Lez e das suas bem trabalhadas Lezirias tomára o nome nacional de Lusitania. O ecco da grande catastrophe produzida pela perfidia impune de Galba chegára egualmente aos confins dos territorios dos Asturios e Celtiberos. Os Povos denominados Carpetanos, os Vettões, os Vacceos e Callaecos, que sempre se tinham conservado apartados para o norte da Hespanha esperando constituir uma Confederação e unidade política sob o nome de Callaecia, agora sentiam-se dominados pela insondavel fatalidade que arrastára os destemidos e independentes Lusitanos á maior das ruinas; elles vierão em magotes vêr de perto a horrorosa mortandade, e arrojar piedosamente mais pedras para os Montes Gaudios. Esses tumulos cresciam, como attestando ao mundo, que eram innumeros os corações que pulsavam por inultos mortos, e que os mesmos braços que arrojaram aquellas pedras, serão os mesmos que arremessarão as suas lanças e brandirão as pezadas lorigas contra o fautor da execranda iniquidade.

      Assim se fôram formando bandos e numerosas guerrilhas, imperfeitamente armadas, que clamavam por vingança; e vendo que muitas cidades alliadas dos Romanos, e outras por temor ou covardia, não tinham vindo celebrar a cerimonia dos Montes Gaudios, foi contra ellas que arremeteram na sua ancia de vindicta. Passavam ja de dez mil os Lusitanos que se ajuntaram em differentes guerrilhas, entregues á aventura e audacia de destemidos Cabecilhas, que fôram descendo para o sul da Peninsula, devastando e roubando quantos povos encontravam que estavam no goso do patronato romano. Chegaram até á Turdetania, essa opulenta região banhada pelo Betis, tendo por limite da parte do norte o curso do Anas; e levaram a sua audacia até ao ponto de atacarem a importante fortaleza de Gades, ou Gadir, como lhe chamaram os Phenicios. Não era sem rasão que os viajantes phenicios, gregos e romanos diziam que os Lusitanos eram o povo mais numeroso e valente entre as nações de toda a Iberia.

      VI

      A Hespanha Ulterior estava quasi completamente insurrecta. Passavam de dez mil os Lusitanos revoltados contra o poder de Roma, e que juraram sacudir o infame jugo. No seu Conselho armado decidira-se, que todo aquelle que podesse sustentar-se a cavallo, embora velho ou doente, se appresentasse para o combate; mesmo as crianças que podessem alevantar um chuço ficavam obrigadas a incorporar-se nas turmas e milicias de cada terra.

      Era o começo de anno estival, e na entrada de Maio, em que se faziam as dansas e cantares debaixo do verde pinheiro, e em que os homens validos, os chefes de familia, effectuavam as grandes paradas das suas forças defensivas. Parece que o ajuntamento d'aquella multidão enorme respirava um ár de festa, uma alegria communicativa, em que a ideia de morrer pela liberdade da sua terra dava uma exaltação delirante; dir-se-hia que era a Primavera sagrada, em que novas colonias iam pelo mundo para fundarem uma outra cidade. Verdadeiramente era uma entrada em campanha, em que o costume vinha coadjuvar a necessidade. Viam-se homens da estatura meã, e enxutos de carnes, de cabellos pretos e olhos castanhos, ligeiros e ageis, capazes de resistir a todas as intempéries, soffrendo todas as privações mas sempre alegres; traziam pendurados ao pescoço, por correias, pequenos escudos de tamanho de quatro palmos, e prezas á cinta umas compridas facas, a que se soccorriam em lances decisivos, e ainda no combate pessoal. O braço era armado com uma lança comprida, com uma ponta de bronze e um gancho ao lado, servindo para ferir e prender aquelle que topasse na frente. Apenas lhes defendia o corpo uma couraça de linho crú fortemente tecido, ou treu, sobre a qual assentava uma cóta de malha tecida de arame, que nenhum dardo poderia atravessar. Capacetes de couro com triplice cimeira cobriam-lhes as cabeças, aparando com segurança os golpes dos montantes; outros guerreiros traziam os cabellos compridos, como usam as mulheres, cingidos com nastro na fronte, no momento das refregas; os peões appresentavam-se com cnémides, saiaes negros, e chuços; outros com bragas forradas de pele de cabra, ou safões. E os Cavalleiros, montavam alazões e fouveiros, com estribos em fórma de concha feitos de madeira; com mantos listrados formando quadrados variegados. Formavam grupos de trez em trez, a que davam outr'ora o nome de Trimarkisia, indo um dos Cavalleiros á frente no ataque, ficando mais atraz os outros dois para o defenderem e substituirem. Reinava uma certa ordem n'essa multidão, dividida em catervas de infantes ou peões, com alguns Cavalleiros nas alas extremas: e os Hastarios, os Sagitarios, ou archeiros, os Fundibularios, moviam-se com uma ligeireza extrema, tomando os Cavalleiros como pontos de mira para se ajuntarem no sitio em que se tornava mais urgente a defeza ou o ataque. Os Carros, ou Covões armados de longos espetos, eram puxados a quatro cavallos, empregando-os para romperem a ordem da infantaria inimiga, e para servirem de parapeito e estacada defensiva detraz dos quaes os archeiros


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