Viriatho: Narrativa epo-historica. Braga Teófilo
hoje!
Viriatho nos arroje
Á implacavel guerra
Por esta livre Terra.
Salvador desejado,
Não debalde esperado,
Vencerão seus tyrannos
Por ti os Lusitanos.
IX
Acclamado chefe supremo, acceitou Ouriato desde esse momento o titulo de Viriatho, que já não era um nome mas uma prestigiosa invocação, um grito de guerra, que dava confiança e energia ás almas. O que Viriatho assentou no Conselho armado com os chefes dos terços e catervas, de essedarios e trimarkisios, sobre o seu plano estrategico, patenteou-se d'ahi a poucas horas nos pavorosos effeitos.
Rompia a madrugada. Vetilio, em seu acampamento, esperava os emissarios lusitanos para effectuar-se a rendição e a deposição das armas. Alvorecia-lhe um dia de gloria: firmava de um modo estavel o dominio de Roma na Hispania Ulterior, e antegostava a entrada triumphal na Cidade eterna, ladeado de despojos riquissimos e prisioneiros. O sol erguia-se, e Vetilio, estranhando a demora, entendeu tirar partido do caso inopinado, que justificaria todas as atrocidades que ordenasse contra as tropas que na vespera lhe tinham mandado pedir paz á custa da liberdade. Ordenou logo o formar o exercito consular em acies, ao qual passou a senha irrevogavel:
– Sem tréguas, nem quartel.
O exercito romano começou a mover-se e a avançar, e a pouco tempo de marcha Vetilio viu negrejar fronteiros e estendidos um esquadrão de Cavalleiros lusitanos, dispostos em ordem de batalha, e firmes sobre o terreno como se esperassem o assalto. O Consul olhou desdenhoso para o inimigo; não passariam de mil os Cavalleiros, que permaneciam impavidos, como a vedar-lhe o horisonte.
– Sem chefes! para que lhes serve a resistencia? A victoria é minha.
E em seguida Vetilio deu ordem para que seguissem sempre para a frente as quatro Legiões do exercito consular, abrindo caminho a Cavalleria, começando a batalha por uma carga contra a linha fronteira dos lusitanos.
Viriatho, montado em um cavallo branco, deixou approximar até bem perto a Cavalleria romana, que vinha á desfilada; e a um signal dado a linha cerrada dos seus mil companheiros dividiu-se em duas, debandando cada fragmento para seu lado, com uma rapidez de quem sabe trilhar por combros e ribanceiras. Notou Vetilio o facto com surpreza, vendo desapparecer escoteiramente os dois troços dos mil Cavalleiros, como se dispersam os bandos de estorninhos ou de pardaes, cada qual como melhor e mais ligeiramente podia. Não teve tempo para reconhecer se aquillo seria covardia ou estrategia, por que pela fuga repentina dos Cavalleiros descobriu diante de si uma extensa e larga planura arrelvada, de uma verdura avelludada, e além no extremo d'ella o exercito lusitano fazendo evoluções para dispôr-se em ordem de batalha. Pareceu a Vetilio, que os mil Cavalleiros lhe fechavam o horisonte, para não serem bem conhecidas as forças lusitanas, ou para lhes dar tempo a escolherem um local em que melhor se defendessem; e sem pensar em dar caça aos fugitivos, deixou a Cavalleria seguir no seu impeto, e apoz ella as cohortes das Legiões, que em carreira vertiginosa avançaram por sobre a verde planura, com o fito em esmagar por uma valente carga a infanteria lusa.
As tropas que seguiam mais atraz dos triarios, os rorarios, os accensi, os ferentarios, estacaram horrorisadas, quando viram pela planura verde e extensa enterrarem-se os Cavalleiros, desapparecendo debaixo d'elles os cavallos, outros sumindo-se completamente, e os manipulos dos hastatos chafurdarem nos lodos que esguichavam do tapete da relva formosissima! Caso nunca apontado nos annaes militares de Roma. Ninguem conhecia um tão extraordinario phenomeno de terreno. A planura fôra feita pelas neves do inverno, enchendo os medonhos barrocaes; a superficie lisa era revestida pelas relvas espontaneas do gervum, cujas raizes entrelaçando-se resistentemente formavam uma crosta que simulava um solo que tremia, e sobre a qual podia passar sem perigo de romper-se um viandante. Foi isso o que enganou Vetilio: por que alguns guerrilheiros lusitanos corriam sobre certos pontos da patameira. Viriatho, conhecedor de todos aquelles accidentes do territorio, calculára bem, e fôra melhor coadjuvado. Uma grande parte do exercito romano estava annullada ou perdida, atolada nas terras moles, e nos barrancos occultos debaixo da capa traiçoeira da verdura do gervum. A temerosa desgraça que ameaçara as tribus insurrectas, invertera-se agora tornando irremediavel a derrota das Legiões consulares.
O exercito lusitano, proseguindo no cumprimento do plano estrategico de Viriatho, dirigiu-se para Tribola. Pelo menos toda a Cavalleria ligeira dos romanos ficou atolada nas lamas, e com ella a infanteria composta de besteiros ibericos, germanos, gregos e asiaticos; e mesmo alguns Centurios e Tribunos do commando das Legiões. Uma tremenda desgraça, impossivel de prever, e por ser caso unico e excepcional, tanto mais inevitavel até para um homem experimentado e cauto como Vetilio.
Pela retaguarda do exercito consular reappareceram os mil Cavalleiros, soldurios de Viriatho, que tinham jurado acompanhal-o sempre em todos os transes, e que entendiam as suas ordens pelos silvos de uma buzina, como se usava na deambulação da Mésta. Viriatho reconheceu pela obesidade o Consul Caio Vetilio, e elle mesmo por sua mão o arrancou dos lamaçaes em que tinha preso o cavallo:
– Não me serves para escravo; és velho e pançudo. Ninguem dará por ti um sestercio.
E tocando-lhe com a foice roçadoira no hombro, continuou Viriatho:
– Não te matarei, sem que te defendas.
Vetilio fitou attonito aquelle homem magro e enxuto de carnes, e vendo que tudo para si estava acabado, atirou com a sua espada ao chão, renunciando como caricata a qualquer tentativa de defeza. Um dos soldurios de Viriatho atravessou o Consul com um dardo de lado a lado; mas em Roma referia-se que Vetilio morrera sim, mas ás mãos do proprio Viriatho.
O exercito consular, reconhecendo-se sem chefe, abandonou o campo e tratou de pôr-se a salvo. Em marchas forçadas, os seis mil legionarios que escaparam dirigiram-se para uma cidade do litoral chamada Carpesso, na região da Tartessida. O Questor pretorial tratou de organisar-lhe a defeza, fazendo em roda da cidade fóssos e trincheiras da terra revolvida, com receio do assalto do destemido cabecilha lusitano ás arcas do thesouro, ás bagagens, auxiliares e cavallos de remonta, que por irem no couce do exercito não se encravaram na patameira.
X
Depois d'este feito, em que o exercito lusitano se viu salvo pela astucia e coragem de Viriatho, a confiança no seu commando centuplicou-lhe as forças, seguro de que elle o conduzirá á victoria, e só elle saberá sustentar a independencia da Lusitania. Uma cousa veiu acordar o resurgimento do acabrunhado povo, o impeto que suscitava esta incomparavel victoria da astucia sobre a força bruta.
Quando Vetilio foi agarrado por Viriatho, os lictores que acompanhavam o Consul com os feixes de varas peculiares da dignidade curul, entregaram-as ao vencedor, como uma transferencia do poder supremo. O Cabecilha mandou desamarrar os feixes de varas, e distribuiu-as pelos seus soldurios, aos de maior confiança d'entre os mil Cavalleiros que se lhe devotaram:
– Cada um de vós, irá por todos os Castros, Citanias e Herminios, cravar no chão a vára do lictor, que eu entrego na fé celtiberica. Essa vara é o symbolo da guerra accesa e contínua; onde ella se hasteia chama os povos ás armas, e exige soccorro aos que combatem. Tal é o poder da antiga tradição da nossa raça. E se a lança fincada no chão podia mais do que um grito de guerra, a vara do lictor arrancada ao poder do Consul romano hade alevantar todas as nossas tribus unindo-as n'uma só vontade, para repellirem o invasor do seu territorio.
Cem soldurios partiram logo com as varas distribuidas dos feixes dos lictores, e fôram craval-as nos herminios e montes povoados, como um annuncio da inesperada victoria, e de que a guerra contra os Romanos seria agora incessante. Foi assim a noticia levada muito longe, e de longe vieram novos trôços e viveres, para reforçarem e abastecerem os guerreiros lusitanos.
Ditalcon, um dos tres companheiros que andam junto a Viriatho, lembrou ao Cabecilha um sacrificio de cavallos e prisioneiros ao deus Neton. Viriatho com a sensatez, que era uma das suas forças, volveu-lhe seccamente:
– Não ha tempo a perder; nem um inimigo