Viriatho: Narrativa epo-historica. Braga Teófilo
romanos e naturalistas não queriam repetir por consideral-os barbaros, por onde quer que passaram os foragidos que escaparam casualmente da horrifica matança, já se formavam trôços de gente armada com hozes, ou fateixas de arrêmeço, catanas grossas, pelo instincto natural da defeza de seus lares.
Esses poucos foragidos levavam na palavra o incendio, que se espalhava de cidade em cidade, de povoado em povoado, narrando desenfeitadamente o crime do governo de Roma. É certo que a população lusitana estava cansada das recentes e inefficazes luctas; as cidades confederadas e estipendiarias queriam o socego da sua vida laboriosa, supportando sacrificios da liberdade. Nas cidades dos Turdetanos, como Balsa, Salacia, Cetobriga eccoara imprevistamente o caso nefando da carnificina, e lamentavam não existirem chefes que organisassem a resistencia contra o brutal e monstruoso attentado. E se esta impotencia, ao menos, assegurasse alguns annos de tranquillidade para o sul da Peninsula! Outro Pretor que venha, diante da impunidade d'este, até onde levará as depredações e os morticinios!
Os povos que gosavam das garantias de Municipio romano não queriam mover-se para não decahirem dos privilegios que fruiam concedidos pelo conquistador; os povos que participavam dos direitos do antigo Lacio obedeciam á mesma tendencia egoista. Sómente entre os povos na situação de tributarios poderia surgir um impulsivo instincto, mas impotente de revolta. Nas cidades dos povos denominados Celticos e Iberos havia um certo ciume contra a aspiração hegemonica dos Lusitanos; mas nem por isso se ligou menos interesse ás narrativas dos foragidos da matança de Galba. Os seus gritos repetidos de terra em terra chegaram a Laucobriga, a Castraleuco, Arandis, Mirebriga, e os trabalhadores do campo interrompiam as bessadas para escutarem esse caso estupendo; as festas religiosas e as nupciaes suspendiam-se á chegada d'essas figuras sangrentas, que pareciam phantasmas resurgidos do campo da matança para virem reclamar a eterna vindicta.
Ouvireis o que bradavam esses foragidos, quasi em delirio, alguns d'elles cahindo no chão esgotados de sangue que ainda vertiam das feridas, outros borbotando sangue pela bocca, aos gritos convulsivos com que narravam o caso da mortandade.
– «O Pretor Servio Sulpicio Galba convocou para uma assembléa nas campinas da margem direita do rio Tagus, os trez Conventos da Lusitania Emeritense, Pacense e Scalabitano com as trinta e seis Cidades estipendiarias, recommendando que viessem sem armas, porque se tratava da distribuição de terras, do estabelecimento de novas Colonias, e de elevar alguns Povos tributarios aos privilegios de Cidades Confederadas, de Municipio romano e do antigo Lacio.
«Confiados nas palavras do Edito do Pretor, concorreram ao local que lhes fôra aprazado, muitos povos, interrompendo as suas lavouras; e como se fôsse para uma festa de paz e congratulação levaram comsigo suas mulheres e filhos, e os anciãos mais venerandos das tribus, como arrefens do seu animo pacifico.
«O Pretor ordenou que se ajuntassem na campina em que tinha mandado plantar uma Arvore de Maio, junto da qual se devia assignar o pacto perpetuo da concordia com as Tribus lusitanas.
«Emquanto se esperava o Pretor cercado da sua Cohorte, começaram a apparecer quatro Legiões, que se formaram em orbis, estendendo em ordem de batalha as suas tres fileiras, e envolvendo como em uma grande muralha toda aquella multidão inerme! Ninguem suspeitava o intuito do subito envolvimento.
«Os manipulos da Legião, com as suas bandeirolas fôram marcando os logares, que á frente de todos occuparam os Hastarios; por traz d'estes ficaram os Principes dispostos de modo a por entre elles poderem recuar os que lhe estavam em frente; na terceira linha estendiam-se os Triarios, como barreira de resistencia.
«Depois d'isto appareceu a Cavalleria, correspondendo quinhentos Cavalleiros a cada Legião, armados com o gladio hispanico de dois gumes. Foi então que um gelido terror se apoderou d'aquelle povo indefenso. As lanças e chuços dos Hastarios collocaram-se por um movimento repentino em riste, como formando uma muralha cerrada de espetos.
«O Pretor Galba não apparecia! Um presentimento de morte se estampou na lividez de todos os rostos, quando viram por detraz dos triarios moverem-se torres de madeira, catapultas e balistas.
«Com certeza Galba planeára uma infamissima traição! Como fugir-lhe? As mulheres, em lamentos atroadores, abraçavam os filhos, sem perceberem ainda o perigo. Os velhos aconselhavam prudencia, esperando serenos as ordens do Pretor.
«N'este momento de angustia pezados calháos fôram de longe arremessados por catapultas contra aquella multidão compacta, esmagando alli algumas centenas de lusitanos. O grito de espanto parecia uma tempestade; os que tentavam fugir fôram espetar-se e morrer nas fileiras cerradas dos Hastarios; os que se estreitavam uns aos outros n'um panico inconsiderado abafavam-se.
«E emquanto iam chovendo os grandes calháos arrojados pelas catapultas, cahiam sobre a multidão as Falaricas ou lanças incendiarias, que os Romanos tinham tomado dos costumes hispanos, e outros engenhos arremessavam panellas de pez e estôpa ardendo, que os Cestrophendones faziam cahir no meio da assembléa.
«E como se não bastasse tudo isto para destruir aquella gente desarmada, os Fundibularios baleares mantinham um chuveiro de pedras sempre certeiras, coadjuvados pelos Arcubalistas.
«A multidão ainda se movia, embora não offerecesse resistencia alguma; mas Galba, querendo terminar a sua hediondissima traição e vendo que o sol já declinava, resolveu o final exterminio antes do descer da noite. Os Cavalleiros recusavam-se á fadiga de passar á espada tantissima gente inerme que ainda sobrevivia. Foi então que Galba se lembrou de como na guerra de Macedonia, Paulo Emilio deveu a victoria decisiva ao emprego da tactica dos Elephantes; e deu logo ordem a que os dez Elephantes offerecidos por Massinissa aos Romanos para servirem nas guerras contra os Celtiberos, se empregassem agora para acabarem de esmagar os temerosos rebeldes Lusitanos.
«Os Elephantes couraçados com chapas guarnecidas de espadas fôram conduzidos para aquelle montão de gente, cuja carne e sangue formava com a terra recalcada uma massa horrenda. De baixo das patas dos dez Elephantes sentiam-se fracassar os ossos das victimas, e o sangue respingava-lhes até aos peitos, prendendo-se-lhe nas pernas as tripas que eram casualmente arrancadas na sua passagem.
«A noite vinha descendo caliginosa e um vapor espêsso se erguia dos valles fundos. Foi então, que ainda d'entre o montão dos cadaveres se ergueu um vulto surrateiramente, e saltando ao pescoço de um Elephante, o pezado animal cahiu redondamente morto em terra! As trévas iam-se engrossando, e o vulto agil e escorreito foi assim saltando sobre cada um dos Elephantes, que por seu turno iam cahindo mortos! Quem seria esse vulto extraordinario, que sabia o segredo de dar a morte instantanea a tão poderosos animaes, em cuja pelle não penetravam os mais pujantes dardos? Quem quer que fôsse, elle sabia o segredo apprendido nas Guerras punicas: de que a mais leve picadela no bolbo pela vertebra que toca no craneo do Elephante fazia-o cahir fulminado instantaneamente. Assim fôram mortos os dez Elephantes.
«A noite era já cerrada; e enquanto Galba mandára lançar fogo ao montão dos cadaveres entre os quaes fôram encontrados os dez Elephantes de Massinissa, d'entre esses cadaveres escaparam-se alguns individuos que se tinham occultado debaixo dos corpos exânimes, e que se fingiram mortos: são esses os que andam de cidade em cidade da Lusitania e da Turdetania pedindo vingança! Vingança! Vingança!»
Por valles e serras, e resoando de monte a monte, entoava-se um Canto de guerra, que fazia referver o sangue nas veias, exaltando os espiritos ainda os mais acabrunhados. O Canto podia mais do que a reflexão, e cada povo accrescentava-lhe uma nova estrophe, como a aspiração do resgate. A palavra poetica é alada, o pelo prestigio da tradição transpõe as edades repercutindo-se na alma dos vindouros.
Terra da Lusitania,
Ensopada de sangue
Por horrendo baldão!
Chamou-nos o Romano
Para a alliança de paz,
Mata-nos á traição!
Virus de iniquidade,
D'esse fermento de odio
Brote a destruição.
Que a lança dos Quirites
Se quebre, e em