Viriatho: Narrativa epo-historica. Braga Teófilo
de Galba; mas é obrigação do Tribuno impulsionar a acção publica, sobretudo quando se trata do crime de alta traição, como agora, em que é réo Servio Galba! Eis o facto na sua espantosa crueza: numerosas cidades da Lusitania, que estavam na situação angustiosa de estipendiarias, vexadas pelos pezados impostos extorquidos pelos magistrados romanos, tinham requerido ao Senado para lhes ser concedida em premio de sua fidelidade a situação de confederadas ou immunes, podendo assim governar-se pelas suas leis consuetudinarias, pelas suas magistraturas locaes, sem comtudo aspirarem ao goso dos direitos politicos de cidadãos romanos. Era a base da pacificação da Lusitania! O Proconsul Galba servindo-se da magestade do povo romano garantindo esse pedido, convocou as povoações desarmadas para lhes communicar o Edito do Senado que o legislava, e envolvendo-as nas suas legiões trucidou traiçoeiramente para mais de trinta mil pessoas, em que a par dos homens validos estavam velhos, crianças e até mulheres!
O povo permaneceu mudo, sem mostrar commoção alguma pelo quadro da horrenda carnificina. O advogado Fulvio Nobilior, que fôra encarregado da defeza de Galba, notou esta circumstancia da insensibilidade moral da plebe. O Tribuno continuou:
– Para o julgamento d'este attentado contra a magestade do Povo romano, bem sei, é preciso um exame dos factos, e por felicidade das nossas instituições sempre perfectiveis, o processo de Galba será formado pelos Questores, que appresentarão ao Concilio da plebe os seus quesitos, sobre os quaes effectuareis a votação. O que outr'ora fôra um motivo de discordia entre o Povo e o Senado é hoje uma harmonia social, por que se reconhece, que assim como os negocios judiciaes carecem de sciencia juridica para serem tratados, os assumptos de jurisdicção criminal não pódem ser sentenciados senão mui reflectidamente. E se a lei tribunicia Calpurnia avocou estas questões a um jury perpetuo, o Povo sem perder a sua prerogotiva delegou este poder judiciario aos Questores. Que Servio Sulpicio Galba seja processado pelo Conselho dos Questores, sendo as suas conclusões appresentadas á vossa deliberação no mais breve lapso de tempo.
Depois de se ter calado o Tribuno, appresentou-se diante do povo, que enchia o Forum, o advogado Fulvio Nobilior, conhecido pela sua extrema argucia, por um espirito sarcastico, que chegava a tocar as raias do cynismo. O seu poder nos tribunaes consistia em fazer desvairar as opiniões, em actuar nas consciencias suscitando a dissolução moral, tornando ridiculos os sentimentos de piedade ou de humanidade. Era sempre ouvido com interesse; a multidão comprehendia-o. Quando veiu á barra, um rumor surdo foi o prenuncio de um grande silencio; o seu discurso ficou memoravel:
– É accusado o Proconsul Servio Galba de latrocinios na Hespanha Ulterior, n'essa região, que assenta sobre jazigos de ouro e prata, a Lusitania! O que tem a fazer um homem culto entre gente barbara, senão levantar do chão as joias que vê calcadas inconscientemente? Tambem da Hespanha Citerior, acabado o seu governo de dois annos, regressa a Roma o Consul Lucio Licinio Lucullo, carregado de assombrosas riquezas, e não foi accusado de latrocinio, nem de rapinas ou extorsões. E por que, tendo os dois magistrados seguido os mesmos processos administrativos? A rasão é evidente. É por que Lucullo soube captar as sympathias, compartilhando o seu ouro e prata, e gemmas preciosas com os patricios influentes, que ahi têm assento no Senado; e para desviar a ideia dos roubos, teve o pensamento de edificar um Templo á Deusa Felicidade, a quem attribuiu a posse de tantas riquezas! Servio Galba só commetteu um erro: – quiz tudo para si, dando apenas algumas migalhas aos legionarios, que o acompanharam nas depredações! D'ahi o odio dos Tribunos da Plebe. Mas, para que dispender aqui o tempo com uma moral especulativa, se esses pretendidos roubos ou concussões fazem que Roma regorgite em riquezas espantosas, trazidas d'essa Hespanha inesgotavel á avidez do estrangeiro? Só lembrarei, que quando Roma se viu assaltada pelos Gaulezes, difficil foi ajuntar mil libras de ouro para pagar a imposição de guerra! E desde que fômos a Hespanha, sete annos antes da terceira Guerra punica, 16:800 libras de ouro já se achavam no fundo do thezouro romano! E no começo da Guerra social, o Erario regorgitava com 1:620$829 libras de ouro! Quem não comprehende que a riqueza de Roma não lhe vinha do trabalho agricola e fabril, mas da guerra em paizes ricos? Foi esta sempre a nossa politica. Combater, vencer, para civilisar, pagando-nos por nossas mãos d'este beneficio. Desde que as Legiões romanas pisaram o sólo da Lusitania, conheceu-se que o ouro nativo ahi abundava em assombrosos filões, e em palhetas nas areias do Tejo! Nada mais claro para um Governo intelligente: – submetter esse povo, fazendo-o trabalhar ao serviço de Roma na exploração das minas de ouro e prata, e de convertermos esses metaes em ornatos pessoaes, baixelas, e sobretudo em moedas, que facilitam o commercio do mundo! Evidentemente Roma é a civilisadora do orbe! Quando Scipião Africano veiu receber em Roma a apotheose pelas suas victorias sobre os Carthaginezes e Iberos, entregou ao Erario de Roma trezentas e dez arrobas de prata lavrada, pilhada em outenta villas e cidades da Iberia! Mas não resam os Annaes romanos da que o general reservou para si. E o seu successor, Lucio Cornelio Lentulo? Tambem depositou no Erario mil e trezentas arrobas de prata lavrada. É incalculavel a quantidade de arrobas de prata que os Consules e Pretores, que administraram as duas Hespanhas, transferiram das suas prezas para Roma. E os celebrados dinheiros de Osca? Porém, essa riqueza só chegava ao Povo romano em alguma festa publica de apotheose; pelo processo moderno, o povo é mais favorecido, porque essas riquezas pilhadas na Iberia e na Lusitania são dispendidas em Roma pelos seus detentores na vida faustosa com que tornam a Cidade a capital da Civilisação do mundo. E depois, de quem tomou Galba as riquezas que está espalhando em Roma? De ladrões despreziveis e abjectos, que occupam o sólo da Lusitania, raça de escravos, impando de ignorancia e orgulho, indignos do bello céo que os cobre. Eis ahi o crime. Expoliar ladrões, do que possuem estólidamente, e enriquecer Roma, que mais será preciso para a apotheose? Galba bem merece do Povo. Fique ao Senado a gloria de condemnar o valente e magnanimo Proconsul pela affectada questão de humanidade, da qual nada consta nos sublimes Annaes das nossas glorias militares, que serão sempre o assombro do mundo! E, que justiça é esta, que accusa Galba, e deixa no doce olvido o Consul Lucio Licinio Lucullo, que passou tambem á Lusitania, trucidando os Vacceos a titulo de vingar os Carpetanos, e mandando a um signal dado passar a fio de espada todos os habitantes da cidade de Caucia? Se, como dizem os nossos jurisprudentes, a Justiça é só uma, os historiadores tambem proclamam, que ha uma só gloria militar: – Vencer! Se hesitarmos nos meios… Roma perderá o imperio do mundo.
O Povo comprehendeu as cynicas palavras de Fulvio Nobilior; e até o proprio Tribuno, cumprido o dever do seu cargo, concordava no fôro intimo com essa doutrina, reveladora de uma crise da consciencia nacional, em que se preparava para futuro não remoto a transformação das instituições sociaes e politicas de Roma.
III
O Consul Vetilio partira a toda a pressa para a Hespanha Ulterior, a reforçar o exercito provincial; temorosas noticias corriam pela Cidade, de um levantamento geral das cidades da Lusitania, que visava a sacudir o jugo de Roma, tornado odioso e incomportavel pela traição execranda de Galba. O Senado confiava na valentia e intelligencia estrategica de Caio Vetilio, sem desconhecer a resistente tenacidade inquebrantavel das tribus lusitanas, que apoiavam a sua independencia individual em um territorio livre, tendo por grito de guerra:
– Vencer ou morrer!
Presentimentos aziagos se espalhavam sobre o exito da expedição de Vetilio. E emquanto espantosos successos se estariam passando longe, muito longe, na parte occidental da Hespanha, no incendio da insurreição, o detestavel Servio Sulpicio Galba vinha compellido á barra do Senado appresentar a defeza dos crimes de que fôra accusado por Catão o Censor. Elle bem sabia que deslustrára pela má fé a dignidade do Povo romano, mas confiava no poder da sua eloquencia prestigiosa.
Galba receou por um momento a condemnação, e preparou a defeza espalhando pelos Senadores e funccionarios de Roma os blocos de prata e ouro em barra, que trouxera das minas da Peninsula, onde tinha para mais de quarenta mil homens entregues ao trabalho forçado da exploração d'esses jazigos, que rendiam vinte mil dracmas argenteas por dia. E como se não bastassem as riquezas que espalhou com profusão pelos juizes, dirigiu-se-lhes ao sentimento, appresentando-se no tribunal com os seus dois filhos. Lida a accusação, foi-lhe concedida a palavra, escutada attentamente. Era um dos casos mais emocionantes de Roma. Será condemnado? será absolvido? Faziam-se apóstas, aproveitando esse lance para um jogo descarado. A palavra eloquente de Galba era conhecida e admirada.
Perorando:
– Todos