Carlota Angela. Castelo Branco Camilo

Carlota Angela - Castelo Branco Camilo


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meu amiguinho, está quasi todo empregado em torrões; e eu, emquanto vivo, não dou nada.

      –Mais uma razão—replicou Mendonça, condoido do vexame de Carlota, e seguro, mais que seguro, do villão caracter do arrozeiro—mais uma razão para v. s.ª não receiar a invasão dos francezes… Agora tem logar—proseguiu elle, mudando de ironico para circumspecto e grave—uma observação que me esqueceu ha dias, quando tive a ventura de pedir-lhe a snr.ª D. Carlota. Eu, snr. Norberto, pedi sua filha, simplesmente sua filha; não pedi dinheiro, nem pedirei jámais. Eu conto com recursos proprios para que ella não sinta falta de commodidades que deixou em casa de seus paes. O meu patrimonio é a patente que tenho e as bem fundadas esperanças de me augmentar n'esta carreira. Não me julgue v. s.ª atido ao dote de sua filha, nem cuide que me affligi com a ameaça de nada lhe dar emquanto vivo. Póde o snr. Norberto gastar, ou augmentar o que tem, que sua filha não esperará a morte do pae para poder comprar mais um vestido. Faça, portanto, justiça ás minhas intenções, e conceda-me que eu dê liberdade a algumas ideias que me estão inquietando e magoando.

      V. s.ª não procedeu lealmente commigo, quando me deu, sem reparo, sua filha. Rogo á snr.ª D. Carlota me consinta este desabafo, porque a clareza, n'este momento, é necessaria a todos nós, e o amor e o decoro costumam, nas almas nobres, soffrer juntos, quando um d'elles é offendido… e agora são ambos.

      –Eu não entendo o que v. s.ª ahi está a dizer—atalhou Norberto conscienciosamente.

      –O snr. Mendonça…—acudiu Carlota; mas o pejo embargou-lhe a voz.

      –Eu queria dizer ao snr. Norberto de Meirelles—tornou Mendonça—que fez v. s.ª mal em dar uma palavra de que se quer desquitar por meios menos honestos, e á custa talvez da minha liberdade. A ida de seu cunhado á capital, e a ordem de eu ir, sem perda de tempo, a Lisboa, escondem uma trama que eu espero desenredar em oito dias. Se o snr. Norberto e seu cunhado julgaram que uma intriga basta para aniquilar um amor de dois annos, uma união de toda a vida já abençoada por Deus, que vê a pureza das minhas ambições, enganaram-se! Retardar não é destruir. Eu confio tanto no generoso coração da snr.ª D. Carlota como em mim proprio; e só o muito amor me podia dar a mim esta franqueza com que fallo, e a ella a indulgencia com que me ouve accusar o proceder injusto de seu pae.

      –O senhor está a insultar-me!—exclamou Norberto—e demais a mais em minha casa!

      –Eu não insulto, senhor, queixo-me de ter sido ultrajado, e reconheço, n'esse desabrimento, que é certissima a perfidia com que fui enganado. Retiro-me, para que v. s.ª não me offenda terceira vez, dizendo-me que o insulto.

      –Pois o melhor é isso—redarguiu Norberto.—O senhor pensava que me levava á valentona? Eu tambem tenho amigos, e sei o que hei de fazer!…

      –Que ha de fazer o pae?—disse Carlota com altivez—O pae não póde fazer nada.

      –Que dizes tu, Carlota?!—trovejou Norberto.

      –Digo que não ha forças humanas que me privem de casar com este senhor. O pae governa no seu dinheiro, e nós nada lhe pedimos. O snr. Mendonça, se quizesse ser menos generoso com meu pae, estaria já casado commigo, porque eu o auctorisei a tirar-me de casa por justiça.

      Norberto, como todas as indoles abjectas, caira no miseravel da sua atonia, sob a fulminante coragem de Carlota. Francisco Salter aproximou-se d'ella, tomou-lhe a mão, como se estivessem sós, e murmurou:

      –A virtude, que Carlota chamou generosidade, continúa. Vou a Lisboa, porque sou militar, e transgrido a honra e dever não me apresentando.

      Mendonça despediu-se de Carlota Angela, que chorava, e de Norberto de Meirelles, que limpava com o canhão da japona de cotim o suor da brunida testa.

      D. Rosalia faltara a este conflicto, porque, atarefada na cozinha com a liquidação dos legumes vendidos na manhã d'aquelle dia, não dera fé de entrar Mendonça.

      Carlota Angela, apenas sósinha com seu pae, voltou-lhes as costas, e saiu da sala.

      Norberto ficara de tal modo aturdido com o desembaraço da filha, que parecia temel-a. Procurou a mulher, e contou-lhe, como elle podia, o succedido. D. Rosalia benzeu-se tres vezes, e tres vezes levou os braços em arco á altura da cabeça, acção favorita da grossa matrona, quando queria exprimir o supremo espanto.

      Animando-se mutuamente, entraram no quarto de Carlota, e gritaram ambos ao mesmo tempo:

      –Filha ingrata! nós te amaldiçoamos!

      –Para sempre!—disse a solo o snr. Norberto.

      –Para sempre!—repetiu D. Rosalia.

      –Amaldiçoada!—bradaram em dueto.

      –E por que me amaldiçoam?—disse Carlota—que crimes são os meus?

      –Ainda perguntas?!—respondeu Norberto, opilando olhos, bochechas, nariz, e tudo o mais susceptivel de opilação na sua elastica physionomia—Pois não tiveste o atrevimento de me dizer ainda agora que eu não podia fazer nada?

      –Disse, sim, senhor; disse, porque ha só um meio de me prohibir o casamento com a pessoa a quem o pae me deu: é matarem-me.

      –Isso diz-se a teu pae, rapariga?–bradou a mãe.

      –A verdade diz-se aos paes; mentir-lhes é que é crime. Para que hei de eu dizer que faço a vontade a meu pae, se não sou capaz de cumprir a minha palavra? Logo que Mendonça voltar de Lisboa, se elle me não procurar, procuro-o eu. Se elle me quizesse com a mira no dote, faria todas as diligencias por que me dotassem, ou morreria de paixão por me não dotarem; felizmente, o homem que Deus me destina é a mim que me ama, e não ao dinheiro de meus paes; para ser sua mulher basta-me o coração; pois bem, fique o dinheiro a meu pae, e seja o coração para o homem que não exige de mim outros thesouros.

      Norberto olhava Rosalia, Rosalia olhava Norberto, grotescamente pasmados. Estranha era para elles a linguagem, o enthusiasmo, a altiveza, as attitudes de Carlota. Queriam contradictal-a com os argumentos triviaes de um casamento rico; mas a migalha de bom senso que tinham ambos, bastava a convencel-os da inutilidade de similhantes razões. Queriam leval-a pelo terror; mas com tanto mimo a tinham deixado emancipar-se desde creança, que não sabiam agora com que gestos, com que palavras, exprimir o agastamento, a admoestação irada, a soberania paternal.

      O coração de Rosalia era bom, e seria ella a protectora do casamento, se a não tolhessem os prejuizos de classe. A mulher de Norberto cuidava, em boa consciencia, que sua filha não podia ser feliz, casando sem o precedente de escripturas de doação, sem a concorrencia de doadores bem ricos e bem estupidos por parte do noivo. Por mais que ella quizesse descobrir no official de marinha os encantos que seduziram sua filha, a tapada creatura o que encontrava era motivo para pasmar cada vez mais.

      –Um engarilho de bigode como um chibo…—dizia ella a Carlota, depois que Norberto se retirara com mêdo de ceder á indignação, que o enfurecia—um pechibeque que não tem terra, nem leira, nem ramo de figueira, ó rapariga, que feitiço te fez aquelle patavina? Ha por ahi tanto rapaz bem azado, com negocio estabelecido, e creditos… se querias casar, por que o não tinhas dito, que já se tinha escolhido a flor dos rapazes do Porto? Está ahi o filho do Antonio José da Silva, e do Joaquim José Guimarães, que por entre os dentes deram a entender a teu pae que te queriam, e ainda estão solteiros, não tens mais que fallar… Ó mulher! isso foi enguirimanço do demonio! Por que não casas tu com um dos outros?

      –Perde o tempo, minha mãe—disse Carlota com firmeza.—Esses homens aborreço-os; o mundo tem para mim um só homem; não vejo, nem quero ver outro: é Francisco de Mendonça, porque sou d'elle, considero-me já sua mulher, e…

      –Tu que dizes, Carlota!?—bradou apavorada D. Rosalia—És já mulher d'elle? Pois tu… Credo! tu estás ahi a dizer blasphemias… Ó desgraçada, pois tu…

      –Eu quê! o que está ahi a mãe a fazer uns espantos que não sei a que vem? Se me julgou culpada de alguma acção indigna de mim, é mais uma injustiça que faz ao homem que amo. Tenha a segurança de que Mendonça não me humilha; pelo contrario, eleva-me,


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