Anuario iberoamericano de regulación. Varios autores

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obstante a necessidade de abertura das atividades para a concorrência e o livre mercado, nunca se pôde descurar que muitas das atividades consideradas serviços públicos têm alguma falha de mercado, decorrente, principalmente, da existência de monopólios naturais6 em alguma etapa de sua cadeia produtiva. Por conseguinte, a abertura das atividades para o livre mercado e a livre concorrência não poderia se dar de forma completa, sem qualquer forma de intervenção do Estado. A regulação antes desempenhada por meio do monopólio deveria passar a ser realizada por outras formas de intervenção do Estado no mercado, voltada a mitigar os efeitos de tais falhas de mercado.

      Nesse passo, a abertura dos serviços públicos a um regime aberto de mercado pressupôs duas ações fundamentais: (i) a redução das barreiras de entrada no mercado e (ii) uma ação estatal corretiva, pela via normativa e comportamental, destinada a mitigar os efeitos negativos dos monopólios naturais existentes.

      No que se refere à primeira ação, houve uma profunda revisão dos conceitos de reserva originária, monopólio estatal e demais correlatos, admitindo-se, aprioristicamente, que a atividade poderia comportar mais do que um agente prestador, agindo em regime de concorrência – ressalvadas, claro, as hipóteses em que a concorrência possa ser perniciosa para o alcance das finalidades da atividade. Via de consequência, independentemente de o agente prestador do serviço público ser estatal ou privado, determinou-se a possibilidade de ingresso no mercado de outros agentes competidores.

      Isso implicou uma quebra de paradigma na concepção de que os mercados de serviço público somente eram alcançáveis pelo Estado ou sua entidade prestadora, ou por concessionários que recebiam um título habilitante exclusivo e excludente para prestar, em nome e lugar do Estado, o respectivo serviço (ou seja, a concessão). Ou seja, foi necessário revisar o conceito de título habilitante relacionado à exploração de uma atividade considerada serviço público.

      Na estrutura antiga da prestação do serviço público, essa atividade era desempenhada exclusivamente pelo Estado, em processo de descentralização administrativa7, ou por um particular que recebia um título habilitante exclusivo e excludente chamado concessão. Ou seja, ou a estrutura de monopólio era atribuída ao próprio Estado ou era transferida in totum para um particular.

      A partir do momento em que se deve assegurar uma pluralidade de prestadores da atividade em regime de concorrência, é necessário revisar os mecanismos e os efeitos dos títulos habilitantes. E isso pode se dar de várias formas diferentes, variáveis conforme a natureza da atividade, as condições do mercado e as finalidades públicas a serem alcançadas8.

      Admitindo-se que a concorrência seja viável e consentânea com o alcance das finalidades públicas do serviço, uma primeira alternativa é transformar a concessão em um título habilitante não exclusivo e não excludente. Ou seja, a concorrência seria alcançada por meio da outorga de diversas concessões a diversos agentes, todos atuantes, pois, sob um mesmo e único regime jurídico. Por exemplo, no Brasil, esse é caso do serviço público de transporte aéreo de passageiro, no qual todos os agentes prestadores encontram-se sujeitos a um único e mesmo regime de concessão de serviço público.

      Um segundo cenário possível é aquele em que apenas o livre mercado e a livre concorrência são suficientes para garantir o alcance das finalidades públicas subjacentes ao serviço público, sendo prescindíveis quaisquer títulos habilitantes. Neste cenário, simplesmente retira-se a necessidade de qualquer título habilitante e se transforma a atividade em algo livremente acessível por qualquer interessado. Opera-se uma profunda desregulação do mercado. Embora não seja um exemplo propriamente atual, pode-se mencionar, no caso brasileiro, a exploração de frigoríficos e abatedouros, que eram serviços públicos com grandes restrições de entrada e simplesmente deixaram de sê-lo.

      Um terceiro cenário possível e pouco menos extremo que o anterior, é o caso em que se abandona o regime de serviço público e o substitui por um mecanismo de concorrência regulada, em que há certo nível de controle do ingresso dos agentes no mercado, bem como há certo nível de regulação de sua ação, mas sem que haja as obrigações inerentes ao serviço público9. No caso brasileiro, pode-se citar como exemplo o setor de geração de energia elétrica, que não se sujeita mais à regulação de serviço público, mas que ainda se encontra sujeito a algum nível de regulação.

      Por fim, o quarto cenário – e, para os fins deste trabalho, o mais importante – é aquele em que os títulos habilitantes para ingresso no mercado comportam regimes jurídicos diferentes, criando-se um sistema de assimetria regulatória10 entre os agentes prestados. Ou seja, há um ou mais prestador do serviço sujeito ao regime da concessão de serviço público, com o dever de cumprir todas as obrigações inerentes a esse serviço, ao passo que há outros agentes explorando a mesma a atividade sob regime jurídico distinto.

      As hipóteses de assimetria regulatória podem contemplar dois cenários de exploração diferentes e são dotadas de grandes complexidades jurídicas e técnico-econômica.

      No que concerne aos cenários de concretização da prestação de um serviço público com assimetria regulatória, há uma primeira hipótese em que existe um agente sujeito ao regime de serviço público e não há qualquer título habilitante necessário para outros agentes adentrem o mesmo mercado e lhe ofereçam concorrência. É, no Brasil, o caso dos serviços postais: há uma empresa estatal (atuante por mecanismo de descentralização administrativa) incumbida de explorar a atividade no regime de serviço público, com o dever do cumprimento de todas as obrigações inerentes ao serviço público, ao mesmo tempo em que há diversos outros agentes que desempenham a mesma atividade sem qualquer título habilitante específico. Ao mesmo tempo, há uma segunda hipótese em que há um agente sujeito ao regime de serviço público e outros agentes dotados de título habilitante distinto que lhe oferecem concorrência fora do regime de serviço público. Entre nós, é caso, por exemplo, do setor portuário, em que há os agentes concessionários e arrendatários que se sujeitam ao regime de serviço público e há agentes titulares de autorizações que não se sujeitam a referido regime.

      Contudo, há enormes complexidades a serem enfrentadas, devendo-se sempre adotar a assimetria regulatória cum grano salis, eis que alguns pressupostos hão que ser sempre observados de forma a evitar distorções no mercado que evitem o alcance das obrigações inerentes ao serviço público.

      Nesse passo, os elementos jurídicos e técnico-econômicos da conformação do mercado estabelecem o dever de a assimetria regulatória ser cuidadosamente concebida, eis que jamais pode predicar a existência de violações à Isonomia e jamais poderá criar cenários de concorrência desleal. Afirmo-o porque a sujeição de agentes econômicos atuantes no mesmo mercado a regimes regulatórios diferentes poderia favorecer uns em benefício de outros, causando grandes distorções.

      Com o fito de evitar essas distorções, parecem-me fundamentais três ações elementares da regulação setorial, quais sejam:

      Em primeiro lugar, é fundamental que somente se insira a concorrência na prestação de um serviço público na medida em que (i) seja ela um instrumento facilitador (e não inibidor) do alcance das obrigações inerentes ao serviço público e (ii) estejam os investimentos exigidos para se assegurar o cumprimento das obrigações inerentes ao serviço público devidamente amortizados, podendo haver o ingresso de novos agentes no mercado.

      No que concerne à primeira afirmação, repiso o quanto já deixei claro: à luz da noção de proporcionalidade, poderá haver restrições à concorrência na prestação de determinado serviço público, a fim de se assegurar o alcance das finalidades do serviço. Isso quer dizer que a concorrência, mesmo sendo a regra, somente será cabível se for condizente com as obrigações inerentes à existência do serviço público (i.e., atendimento de determinados direitos fundamentais)11. Caso a concorrência possa prejudicar a viabilidade econômica da empresa prestadora do serviço público, deverão prevalecer as obrigações


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